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“GRAÇA, O AMOR OBSTINADO DE DEUS POR NÓS”

PASTORAL PARA A IGREJA BATISTA BETEL PARA 2019

TEMA DO ANO

“GRAÇA, O AMOR OBSTINADO DE DEUS POR NÓS”

    “Pensem no amor incrível que Deus demonstrou para conosco ao permitir que sejamos chamados ‘filhos de Deus’ – e não somos apenas chamados assim, mas de fato ‘somos’ filhos de Deus” (1 João 3:1)

“Graça é o movimento continuo, insistente, persistente, permanente, incansável e eterno de Deus Pai querendo nossa atenção de filhos, para nos dar o Amor Absoluto que só Ele tem para oferecer ao ser humano” (Társis Wallace).

            Tendemos a ser pessimistas quando o cenário onde atuamos como atores neste palco chamado vida revela em escala crescente, como atualmente, mais desordem do que ordem, mais mal do que bem, mais medo do que segurança, mais guerra do que paz. Por estarmos testemunhando uma irreversível mudança global de paradigma onde as estruturas do nosso mundo sofrem alterações constantes, rápidas e radicais nossa civilização testemunha o que se convencionou chamar de “mundo de ponta cabeça”. Tudo se inverteu negativamente de uma hora para outra. Princípios e valores antes considerados absolutos, foram relativizados pela volúpia avassaladora dessa cultura do século XXI dominada pelo consumismo, hedonismo, narcisismo e seduzida pelo novo ateísmo.

            Diante de fatos amedrontadores que escapam por completo ao nosso controle, nossa imaginação se apossa de nós pela via negativa fazendo-nos contemplar assustados e inquietos o céu coberto de nuvens pesadas e escuras. Numa reação reflexa, imaginamo-nos sacudidos de um lado para o outro no olho de um furacão e castigados por uma tempestade iminente de consequências imprevisíveis. Tamanha é a insegurança e a incerteza que se apossam de nós que achamos que o fim está próximo, quando na verdade o sentido de caos sinaliza a gênese de uma nova ordem, as dores de parto de uma nova civilização. O que acontece, paradoxalmente, é que essa reação reflexa impede-nos de refletir, porque o que apenas os olhos veem pode nos condicionar para aquilo que é seu próprio limite. Com isso, a visão limitada deste cenário pode nos impedir de pensar na existência de outras alternativas. Ficamos cegos para a possibilidade do sopro dos ventos da Providência Divina dando-nos ciência de que as nuvens, por mais pesadas que sejam, são passantes. E nem nos apercebemos da chegada sutil de uma levíssima brisa nos acariciando para fazer-nos “pensar e lembrar” que acima delas há um sol sempre brilhante. E mais, há o Criador deste cosmos.

Um exemplo bíblico do Segundo Testamento pode nos ajudar na compreensão da saída revelada por Deus para a resolução das crises humanas envolvendo igreja e sociedade. Foi do caos generalizado na dificílima igreja de Corinto (provavelmente o apóstolo Paulo escreveu-lhe cinco cartas tamanha a complexidade de seus problemas éticos internos), que nasceu o imortalizado poema apostólico do amor trazendo uma rica esperança em seu conteúdo e uma certeza de caráter absoluto numa de suas frases: “o amor nunca morre” (1 Coríntios 13:8). Esta foi a prescrição apostólica e teológica para recuperar a saúde daquela comunidade profundamente enferma. Porque uma igreja doente não tem como curar uma sociedade doente. Não seria esta a prescrição necessária para curar a igreja contemporânea e por extensão a sociedade da qual faz parte?

A forma como a igreja evangélica brasileira vivenciou as últimas eleições, com uma assustadora beligerância testemunhada principalmente através das redes sociais, acentuou sua já grave enfermidade: uma rachadura de caráter ideológico separou “irmãos em Cristo”. É triste, mas uma ideologia de fora contaminou a teologia de dentro. E o que é mais grave e preocupante, é que a agressividade das ações e reações caracterizou atitudes não somente de liderados, mas também de líderes, de pastores. E pensar que a igreja cristã nasceu da derrubada do “muro da vergonha” e da construção da “ponte” chamada Cristo fazendo de grupos irreconciliáveis – gentios e judeus – irmãos conciliados (Efésios 2:11-22) e semeadores da paz que excede todo o entendimento.

Desde meados do século passado a Igreja de Deus não vive um bom momento. E a transição para o século XXI não é alentadora. Tanto o catolicismo romano com as intermináveis denúncias de pedofilia de sacerdotes enfermos emocionalmente, como o evangelicalismo com um leque muito mais amplo das distorções comportamentais de suas lideranças, trazem tristeza, desalento e desencanto aos seus seguidores. Some-se a isso um perigoso e crescente número de suicídio de pastores nos últimos dois anos. Entretanto, quando abrimos um pouco mais as cortinas do palco desse cenário e localizamos o mundo religioso brasileiro de um modo geral, vemos que também ele no seu todo passa por momentos vexatórios, haja vista as graves denúncias de assédio sexual a mulheres (mais de seiscentas) contra o médium João de Deus nas últimas semanas (com outros médiuns sob suspeição pelo mesmo motivo). Ou seja, o vírus da corrupção de princípios e valores contaminou todos os segmentos institucionais da história contemporânea e o da religião, infelizmente, não foi exceção.

            Que fazer como Igreja de Jesus Cristo nesse contexto? Resgatar a eficiente terapêutica da graça divina para as grandes e graves doenças da alma: o amor de Deus. Só ele pode fazer esse resgate, só ele pode promover essa cura das nossas almas tão feridas pelos contínuos e graves danos que fizeram adoecer gravemente a nossa civilização globalizada. Este amor é revelado pela Bíblia Sagrada e está longe de ser apenas um conceito ou uma emoção. Não há nenhum romantismo neste amor mas um pacto de fé radical em largura, altura, extensão e profundidade. Este amor é uma Pessoa e também um Poder. Ele é o que o teólogo alemão Karl Rahner chamou de “graça de Deus nos abismos humanos”. Precisamos nos abrir para acolher este poderosíssimo amor divino que emana dessa graça multiforme e superabundante. Somente ele pode nos tratar, nos curar e nos dar condições de pensar na cura dos outros. Só ele pode renovar nossas forças combalidas, nosso ânimo fragilizado e nossas esperanças enfraquecidas. Que o verbo “aceitar” (este amor) nos amadureça para chegarmos a ser, segundo Paulo, “como adultos plenamente maduros, plenamente desenvolvidos, plenamente cheios de vida, como Cristo” (Efésios 4:13).

A mudança de paradigma desta história contemporânea universal trouxe-nos como Igreja de Deus a uma encruzilhada: ou aceitamos a graça de sermos amados incondicionalmente por Ele ou jamais experimentaremos a plenitude do Espírito que “derrama o amor de Deus em nossos corações” (Romanos 5:5) quando verdadeiramente nos convertermos a Jesus Cristo como Senhor Absoluto e único e suficiente Salvador de nossas vidas. A vida genuinamente cristã começa com a conversão a esse Deus-amor-agápe e desenvolve-se com o reconhecimento e aplicação prática do Grande Mandamento tão realçado por Jesus: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo” (Mateus 22:34-40). É o único modo de vivermos de fato nossa experiência de ‘filhos amados’ do Pai e nos aproximaremos do nosso semelhante com o sentimento de compaixão assumido e vivido por Jesus Cristo. Só assim conseguiremos ser instrumentos de salvação e cura desse mundo tristemente enfermo. Infelizmente, mesmo em nossos arraiais cristãos não há mandamento mais relegado ao esquecimento, mais posto à margem da vida do que este. Temos grandes prejuízos pessoais e existenciais com a marginalização dessa força divina vital disponibilizada gratuitamente em Jesus Cristo. A própria história da Igreja é a grande testemunha dessa triste verdade.

I – PELA GRAÇA A BÍBLIA NOS REVELA QUE DEUS É AMOR ( João 4:8,16)“Eu pertenço ao meu amado, e ele me deseja”. (Cantares 7:10). Também pela graça, a mesma Bíblia revela que “somos amados dEle” (Romanos 1:7; Colossenses 2:13). Você já atentou para o significado disso? Para a honra e privilégio que esse amor quer nos proporcionar? Para o glorioso compromisso que nos inspira? Na saúde plena que ele nos quer dar? Na avaliação do criador da Hierarquia das Necessidades na vida do ser humano, o psicólogo  Abraham Maslow mostra que uma delas é a de ser aceito por alguém. Deus nos aceita apesar de quem somos e também do que somos. Grace Stewart, professor de psicologia do século passado afirmou que “o ser humano possui três necessidades básicas: amor, sentido e segurança. A primeira e maior de todas é o amor”. Por isso, gostaria que você parasse um pouco antes de seguir adiante e pensasse no fato de a Bíblia Sagrada como Palavra de Deus afirmar que você é “objeto especial, pessoal do amor Infinito, Eterno e Absoluto de Deus”.

O Deus Eterno, o Criador de todas as coisas, Aquele que do Nada fez Tudo, neste exato momento está derramando seu amor sobre você. Você não percebe, você não sente, mas isso está acontecendo.  Não importa a situação em que você se encontra! Tudo porque o Estado Absoluto dEle é este: Amor Absoluto. Por isso, Deus só pode amar, Ele não desiste nunca de nos amar porque não se cansa jamais de nos amar. Como Amor Absoluto Deus é Aquele que não somente nos tira do fundo do poço, mas faz o que nenhuma outra divindade ou poder humano podem fazer: tira-nos do poço sem fundo se lá estivermos. O Salmo 42:7 fala do “abismo que chama outro abismo” com seu poder de atração sugador e destruidor. Deus é maior que os abismos mais sombrios e tenebrosos; Deus é a permanente Luz da aurora cujos raios solares da sua justiça misericordiosa nos aquece na medida exata das nossas necessidades, principalmente quando sofremos o frio cortante das nossas madrugadas mais solitárias e sofridas.

Ele sabe tudo sobre você (Salmo 139), não há como se esconder da amplitude de seu Poder. Mas Ele não nos olha como o vigilante punidor e sim como o Pai das misericórdias eternas. Realmente, não há nada que você possa esconder dele e, precisamente por causa disso você é objeto do seu amor. Não há nada que possa fazer Deus desamar você porque “nada pode nos separar do amor de Deus em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Romanos 8:38-39). Este é o grandioso e incomparável movimento divino revelado pela Sagrada Escritura. Devido ao seu Estado de Amor Absoluto Deus não pode relativizar seu amor por ninguém. Ele só ama em termos absolutos e por isso Jesus Cristo foi parar na cruz.

O pequenino grande livro do Irmão Roger de Taizé, “Deus Só Pode Amar” é um refrigério contra todo ensino cristão fundamentalista, truncado e doentiamente condicionado sobre o amor de Deus. Há um belíssimo hino que costumamos cantar em nossa igreja, que diz: “Deus é bom, o tempo todo, o tempo todo Deus é bom”. Deus é sempre o amor bondoso e misericordioso em termos Absolutos, Ele é o pastor do salmista que diz com segura certeza: “bondade e misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre” (Salmo 23:6). O exclusivo amor diferenciado de Deus é o sempre inclusivo amor obstinado de Deus voltado para todos aqueles que dele têm carência.

II – PELA GRAÇA A BÍBLIA REVELA QUE SOMOS CHAMADOS A SER AMOR – “Devo à graça tudo o que sou. Tudo. Até a graça para entender a graça é graça”  (Brennan Manning). Por que muitos de nós que nos dizemos cristãos temos tanta dificuldade em ser graciosos e fazer de nossas vidas fontes de amor? Por que nossas vidas são truncadas e vivemos nossos relacionamentos sociais com tantos altos e baixos? Por que somos preconceituosos? Se este é o seu caso, que tal checar sua experiência de conversão a Jesus Cristo? Ela não deve ser algo que aconteceu em “algum lugar do passado” e ficou congelada no mundo conveniente do ontem. A verdadeira conversão possui uma linha de continuidade crescente porque estamos inseridos numa vida determinada pelo tempo que passa. Somos seres inteligentes, em evolução. Nascemos bebês mas não ficamos bebês a vida toda. Crescemos, evoluímos. Por isso Paulo ensina aos filipenses: “desenvolvam a sua salvação com temor e tremor” (Filipenses 2:12). Humildemente, para nosso consolo deles e nosso, o grande apóstolo diz: “Quanto a mim não julgo havê-lo alcançado” (3:13ª). E acrescenta, estimulando-os a não estagnar: “mas uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e avançando para as que estão diante de mim, prossigo paras o alvo, para o prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus” (3:13b-14).

E por que travamos? Por que estagnamos?  Por que erguemos muros? Às vezes o problema está na maneira como aconteceu o que chamamos de conversão; a que tipo de apelo (às vezes apelação meramente emocional) respondemos positivamente um dia, ficando reféns desse episódio. Por exemplo, o teólogo Nels Ferré deu o testemunho de sua conversão nos seguintes termos: “Converti-me três vezes: a primeira vez ao cristianismo tradicional; a segunda vez à honestidade; a terceira vez ao amor de Deus e dos homens”. Comentando esta experiência o experiente missionário metodista Stanley Jones disse: “É lindo, mas a terceira vez foi a conversão verdadeira – as primeiras duas foram preliminares. Uma conversão que não converte nosso amor básico é menos do que conversão cristã”.

A conversão de Pedro não aconteceu quando ele atendeu imediatamente ao chamado de Jesus juntamente com seu irmão André, para deixar as redes e segui-lo como seu discípulo. Em várias oportunidades ele deu provas de que não havia chegado ainda àquela experiência madura do “ponto sem retorno” da linguagem da aviação. E Jesus colocou isso para ele muito às claras mais de uma vez: (1) Numa primeira oportunidade chamou-o claramente de Satanás: “Mas Jesus se virou e disse a Pedro: Afaste-se de mim Satanás! Você é uma pedra de tropeço no meu caminho, pois não está pensando como Deus pensa, mas sim como as pessoas pensam” (Mateus 16:23- Marcos 8:23). Isso significa que quando nossa conversão não passa de adesão humana podemos agir diabolicamente dentro da própria igreja. Buscamos o nosso interesse. Queremos que as coisas sejam do nosso jeito. E Paulo ensina que “o amor não busca os seus interesses” (1 Cor 13:5). (2) Noutra oportunidade Jesus lhe disse: “Simão, Simão, eis que Satanás o reclamou para peneirá-lo como trigo! Eu, porém, roguei por você, para que a sua fé não desfaleça; você, pois, quando se converter, fortaleça os seus irmãos. Ele, porém respondeu: Senhor, estou pronto para ir consigo, tanto para a prisão como para a morte. Mas Jesus lhe disse: Afirmo-lhe, Pedro, que, hoje, três vezes você negará que me conhece, antes que o galo cante” (Lucas 22:31-34). E sabemos o restante da história. Nas três vezes nas quais foi identificado como seguidor de Jesus ele “negou, mentiu e praguejou” (Mateus 26:69-75). Logo depois o galo cantou, confirmando a previsão de Jesus. Não basta dizer que temos Jesus, que “Jesus é meu”, importa que ele nos tenha. Importa cantarmos o que diz o coro do Hino 401 do Cantor Cristão: “Eu sou de Jesus, Aleluia! De Cristo Jesus, meu Senhor/ Não quero falhar, mas quero falar/ andar e viver com Jesus”.

Muitas vezes a pessoa está há anos na igreja, assumindo até funções de liderança, mas sem a definição clara e real de sua conversão. O saudoso amigo, pastor Waldemiro Tymchak, logo que assumi o pastorado da Igreja Batista da Graça em Salvador, em 1976, pregou ali num domingo pela manhã e contou uma recente experiência que havia tido numa igreja batista do sul onde havia levado a mensagem. Quando fez um apelo à conversão, para surpresa de todos um antigo diácono daquela igreja foi à frente dizendo que estava se convertendo verdadeiramente naquele instante. Numa outra ocasião fui fazer uma série de conferências numa certa igreja onde dois diáconos estravam…intrigados. O pastor pediu-me para cantar um hino minha autoria, “Se Você Não Tem Amor”.  No meio do cântico um dos diáconos levantou-se e saiu do santuário. A verdadeira conversão, ao amor de Deus, derruba barreiras e constrói pontes. Convertemo-nos a Deus, para Deus e para o próximo. Em meados do século passado uma música popular norte-americana foi sucesso no mundo inteiro, não só por sua beleza melódica mas também por sua letra nitidamente cristã: “Ele Não é Pesado, É Meu Irmão”. Por mais pesado que seja, irmão não pesa. Irmão é leveza da graça, é parceiro caminhante da “trilha menos percorrida” (Robert Frost) mas mais realizadora.

O Dr. Karl Menninger, psiquiatra norte-americano e diretor da Clínica Menninger, em Topeka, concluiu numa avaliação de  seus pacientes que eles estavam ali porque não amaram ou não foram amados, ou por ambos os fatores. Ao perceber isso reuniu os profissionais da clínica expondo-lhes a situação. A partir de então toda a filosofia da clínica mudou em relação aos pacientes que ali chegassem e os que ali já estavam. Todos os contatos com eles teriam o “amor ilimitado” como carro-chefe de cada um dos funcionários da clínica. Resultado: o tempo de hospitalização foi reduzido pela metade. Havia uma senhora que há três anos sentava-se numa cadeira de balanço sem dar uma palavra sequer a quem quer que fosse. Ele então recomendou à enfermeira: “Maria, eu lhe entrego a Senhora Brown, como sua paciente. Tudo que lhe peço é que a ame até que ela fique boa”. A enfermeira aceitou e assumiu o desafio. Conseguiu uma cadeira de balanço igualzinha à da senhora Brown, sentou-se ao lado dela e revelou-lhe seu amor desde a manhã até a noite. No terceiro dia a paciente falou e em uma semana saiu fora de sua “concha” literalmente curada. Menninger afirmou que a metade das doenças era devido ao ódio e metade dos acidentes que levava as pessoas para ali eram pelo mesmo motivo. Ele disse: “O amor é o remédio. O amor é o remédio para a enfermidade do mundo”.

As pedras clamam quando o cristianismo silencia acerca da mensagem do amor de Deus pela humanidade. Santo Agostinho tem uma frase célebre que diz: “Ame e faça o que quiser”. Nós agimos de modo inverso, fazemos o que queremos, com a “nossa marca”, com o nosso jeito, com a nossa autonomia e depois queremos amar e ser amados. As pessoas logo percebem a inversão e a nossa representação, e se desinteressam dessa “graça barata” (Dietrich Bonhöeffer) porque ela não serve para nada..

            III – PELA GRAÇA A BÍBLIA NOS REVELA QUE A CONVERSÃO AO DEUS DE AMOR NOS COMPROMETE PRAZEROSAMENTE COM O SEU REINO – Leon Tolstoi, grande escritor cristão russo conta que certo dia, ao passear, encontrou um camponês com quem conversou. O camponês lhe disse: “Eu vivo para Deus”. Em quatro palavras ele expressou a profundeza de seu ser.  Então Tolstoi pensou: “Eu, que tenho tantos conhecimentos e cultura, não consigo expressar palavras iguais às desse camponês”. Normalmente nosso comprometimento com o Reino de Deus é através do nosso envolvimento com a Igreja, sinal mais expressivo do seu Reino na história. A Bíblia diz que a Igreja é o Corpo de Cristo, sendo Ele o Cabeça. Que nota nos daríamos como membros desse Corpo? Cada membro do nosso corpo tem sua função vitalizadora para esse mesmo corpo, assim a analogia que Paulo faz da Igreja como corpo é a mais precisa principalmente para a sua missão interna: a comunhão fraterna. A Igreja não funciona bem se seus membros não estão bem. Se não se amam, se não se aceitam, se não se deixam amar por Deus não fazendo de suas vidas canais de amor por onde a graça vai e vem continuamente. A singularidade da igreja se esvai quando a fonte de sua comunhão seca.

Há algumas décadas uma pesquisa foi feita nas igrejas evangélicas brasileiras acerca dos tipos de sermões que eram pregados em nossos púlpitos dominicalmente: evangelísticos, doutrinários, aconselhadores, sapienciais e exortativos etc. Predominantemente e preocupantemente os sermões de “exortação” dispararam à frente. Uma porcentagem assustadora! Alguma coisa estava errada? Muita coisa estava errada! Não se concebe que um Deus que nos ama como Ele o faz, tenha como resposta de serviço cristão do seu povo a imagem de um ferrão espetando-o para que prove esse amor. O amor precisa ser o carro-chefe da missão da igreja em todas as dimensões de sua missão.  Por exemplo: Não faz o menor sentido este absurdo “lugar comum” em tudo quanto é igreja que conhecemos, onde o pastor ou a liderança comprometida da igreja vivem exortando ou implorando em todos os cultos que os membros do Corpo de Cristo cheguem à hora, que não esqueçam de entregar seus dízimos, que venham aos cultos de oração, que ofertem para missões etc., etc., ou seja, que deem prova (nas mínimas coisas) que de fato “amam a Deus sobre todas as coisas”, que de fato estão “buscando o Reino de Deus em PRIMEIRO LUGAR…” Aliás, onde fica esse Reino em nossa hierarquia de valores? Diante da grave e crônica enfermidade da Igreja de Corinto, farta de dons espirituais, de profecias etc. mas indigente de amor, Paulo prescreveu a conversão ao “amor-agápe para a sua cura.

            IV – PELA GRAÇA SOMOS CHAMADOS A SER BENIGNOS NUM MUNDO QUE JAZ INTEIRAMENTE NO MALIGNO (1 João 5:19). “Em cada encontro ou damos a vida ou sugamos. Não há intercâmbios neutros”. (Brennan Manning). A explosão de uma situação social crítica num país, num continente, numa civilização como a nossa não acontece de uma hora para outra. Não é uma ocorrência de causa e efeito imediatos. Pouco a pouco as fagulhas vão surgindo até que num dado momento se percebe na densidade de uma noite escura da existência um clarão que assusta, fazendo com que uma explosão luminosa incandescente seja vista e acompanhada ao som de gemidos e ais. O poeta alemão não-cristão Heinrich Heine, que viveu entre 1797 e 1856 escreveu com a percepção que só os poetas captam, esta pequena e profunda poesia:

Meu Coração Se Aperta
Meu coração se aperta, e com saudades lembro-me dos tempos passados.
O mundo era aconchegante e as pessoas viviam tranquilas.
Mas agora tudo parece deslocado. Que aperto! Que sofrimento!
Morreu nos altos o Deus Senhor, e lá embaixo está morto o diabo.
E tudo parece triste e carrancudo tão confuso, frio e podre,
e, se não fosse pelo restinho de amor nada teríamos a que nos agarrar.

          O poderio do inextinguível e misterioso amor divino no amor humano possui uma grandeza e uma profundidade tão extraordinárias, que mesmo na análise de uma situação crítica feita por alguém não professante da fé cristã, como Heine, ele aparece como uma espécie de flor numa rachadura do asfalto da existência humana. É a luz no fim do túnel. É o brilho divino na opacidade da cidade do homem. É a pequenina chama que aponta para a Cidade de Deus.  O teólogo Stanley Grenz afirma numa de suas obras que “a graça de Deus é a única base para uma vida nova e para a vitalidade espiritual”. É essa graça reveladora e vitalizadora do amor de Deus que no emaranhado de um mundo confuso e desorientado – “Sociedade da Decepção” (Gilles Lipovetsky), “Sociedade do Cansaço” (Byung-Chul Han), “Mundo em Descontrole” (Anthony Giddens) etc. – pede passagem através da Igreja do Senhor Jesus. É ela a responsável por juntar esses cacos quebrados pelo desespero, pelo medo, pela insegurança, pelo vazio, pelo absurdo, com a sensibilidade graciosa Daquele que “amou o mundo de tal maneira…”

Estes dados abaixo foram dados pelo Papa Francisco quando entrevistado pelo sociólogo Dominique Wolton no livro, “O Futuro da Fé” (Editora Petra – 2018): “No mundo de hoje 62 pessoas possuem sozinhas a mesma riqueza de 3,5 bilhões de pobres. No mundo de hoje, 871 milhões de pessoas passam fome e 250 milhões de migrantes não têm aonde ir, não têm nada. O tráfico de drogas faz circular cerca de trezentos bilhões de dólares. E, nos paraísos fiscais, estimamos que “flutuem” 2,4 trilhões de dólares, circulando de um lugar a outro”. Mas há muito, muito mais dramas nas estatísticas do submundo do nosso mundo contemporâneo. Alguma dúvida de que ele jaz no maligno? E que a graça é a ação da benignidade divina como terapêutica para essa malignidade diabólica que separa, divide, fragmenta e tritura vidas?

            Há realmente “confusão, corrupção, podridão” e uma atroz, absurda, maligna e “glacial indiferença” – o oposto do amor –  em todos os reinos do mundo. A esperança de cura está em gestos profundamente humanos de pessoas e instituições explícita ou implicitamente cristãs, transbordantes de um espírito de solidariedade incomum – “a compaixão de Cristo” –  mostrando que nem tudo está perdido. Na noite “escura da alma” (João da Cruz) há sempre uma pequenina chama que guia o peregrino qual criança perdida na direção do colo do Pai. Não devemos nos apagar, não podemos nos apagar. Nossos irmãos nas diferentes trevas da malignidade precisam de nossa suave, carinhosa e luminosa benignidade. Deus só chega a eles através de nós, não de anjos, Na verdade, os anjos somos nós.

            Quando Paulo vai aplicar explicitamente o remédio para a cura da igreja de Corinto, ele começa dizendo “eu passo a lhes mostrar o caminho mais excelente” (1 Coríntios 12:31b) – Deus Pai (Amor), Deus Filho (encarnação do Amor), Deus Espírito Santo (derramador do Amor nos corações humanos): “Se vês o amor, vês a Trindade” (Santo Agostinho). Então, o amor é uma estrada, um “caminho” diferenciado a ser percorrido por nós, um caminho pouco trilhado pelas pessoas, um caminho onde estão as “marcas formosas dos pés daqueles que anunciam as boas novas, que anuncia coisas boas, que faz ouvir a salvação, que diz a Sião: o teu Deus  reina!” (Isaías 52:7). A partir do Primeiro Testamento, este caminho começa a ser apontado: “Quando você se desviar para a direita e quando se desviar para a esquerda, seus ouvidos ouvirão atrás de si uma palavra dizendo: ‘Este é o caminho, ande por ele” (Isaías 30:21). No Segundo Testamento, no Evangelho de João, este caminho é personalizado e personificado – “Eu Sou o Caminho” (João 14:6) –  na 1ª Carta aos Coríntios ele é revelado como “o mais excelente”; e na Carta aos Efésios é confirmado: “andem em amor, como também Cristo nos amou e se entregou a si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus, em aroma suave” (Efésios 5:2). A graça amorosa de Deus é transbordante dessa delicadeza que perfuma a vida com a singeleza da fragrância de Jesus.

            Termino esta pastoral para 2019 citando Philip Yancey (“O Eclipse da Graça”) quando conta a missão do cientista evangélico Francis Collins numa experiência com o grande pensador ateu Christopher Hitchens: “No irresistível exemplo do dr. Francis Collins, eu vi como o serviço silencioso do amor pode desarmar quem nos despreza. Ninguém pode duvidar das credenciais de Collins como cientista: ele tem mestrado e doutorado e dirigiu o Projeto Genoma Humano em seu vitorioso empreendimento de mapear todos os 3 bilhões de letras do código genético humano. Collins também se identifica como cristão comprometido e se envolveu em cordiais debates públicos com ateus como Christopher Hitchens e Richard Dawkins (o último numa reportagem de capa da revista Time). Em virtude de sua fé cristã, sua nomeação para dirigir os Institutos Nacionais de Saúde, a maior organização científica dos Estados Unidos, Collins foi alvo de ácidas críticas. Um cientista o acusou de demência e outro se queixou dizendo: “Não quero que a ciência americana seja representada por um palhaço”. Os céticos zombaram de seu respeito pela Bíblia: quando o entrevistador de televisão Bill Maher disse a Richard Dawkins (falsamente) que Collins acreditava numa serpente que fala, Dawkins respondeu: ‘Ele não é um sujeito brilhante’.

            Com o tempo, porém, Collins conquistou a maioria de seus críticos. Enquanto acompanho sua carreira, uma coisa me impressiona mais que suas numerosas realizações: o modo com que ele trata seus opositores. Em suas visitas periódicas a Oxford, ele toma chá com Dawkins. Da mesma forma, encontrou-se muitas vezes com o ateu Christopher Hitchens, autor de ‘Deus Não é Grande’. E, quando soube que Hitchens tinha um câncer no esôfago, Collins o contatou oferecendo ajuda: ‘Como Diretor dos Institutos Nacionais de Saúde, eu aprovo muitas bolsas de pesquisa financiadas pelo governo, e conheço algumas abordagens de ponta baseadas na genômica do câncer. Durante os meses seguintes passou horas com a família de Hitchens examinando várias opções de tratamento. Christopher Hitchens viveu com seu câncer mais um ano e meio, uma dura provação que ele documentou em colunas escritas regularmente para a revista Vanity Fair. Contou que recebeu mensagens de cristãos cheios de ódio, inclusive de um que, acreditando erroneamente que Hitchens tinha um câncer de garganta, exultou porque ‘ele contraiu um câncer naquela parte de seu corpo que ele usava para blasfemar. […] Depois vem o mais engraçado, quando Hitchens é mandado para o Inferno para ser torturado no fogo eterno’.  No entanto, numa das últimas colunas de Hitchens ele presta homenagem a Francis Collins, descrito por ele como “um dos maiores americanos vivos” e “nosso médico cristão mais altruísta”. Escreve ele: “Esse grande filantropo é também um admirador de C.S. Lewis, e seu livro A Linguagem de Deus se propõe a compatibilizar a ciência com a fé. […] Também conheço o Francis de vários debates públicos e privados sobre religião. Ele tem sido muito bondoso fazendo visitas e discutindo comigo todos os tipos de tratamentos novos, até há pouco tempo apenas imagináveis, que poderiam se aplicar ao meu caso”.

            Christopher Hitchens não se converteu no leito de morte e deixou esta vida como ateu convicto. Mas pelo menos de um amigo ele recebeu cuidado espiritual, “o silencioso serviço do amor”. Esse amigo cumpriu o mandamento de Hebreus: “Cuidem para que ninguém se exclua da graça de Deus” (Hebreus 12:15). O resto está nas mãos de Deus”. Sören Kierkgaard (1813-1855) teólogo e filósofo cristão dinamarquês nos deu este alerta: “Frustrar alguém no amor é a mais terrível decepção; é uma perda eterna para a qual não há compensação, na vida ou na eternidade”. João da Cruz (1542-1591), místico espanhol, legou-nos esta preciosa lição: “Onde não existe amor, coloque amor e encontrará amor. Um aluno do professor Leo Buscaglia (1924-1998) disse numa de suas aulas: “Acho que o amor é muito parecido com o espelho. Quando amo alguém, essa pessoa torna-se meu espelho e eu me torno o dela; e refletindo-se um no amor do outro, vemos o infinito”. Novamente João da Cruz nos chama a pensar: “No entardecer da vida seremos examinados no amor””

No amor divino fomos criados, do amor divino temos vivido, no caminho do amor divino somos chamados a andar e para o amor divino iremos um dia retornar. E quando lá chegarmos, certamente queremos ouvir do Pai das misericórdias eternas, o Deus-Amor, dizer-nos com Graça Absoluta: “Entrem no gozo eterno do seu Senhor”.

                        Um Feliz 2019! Que seja o Ano da Graça do Amor Divino em nossa mais profundas carências humanas! Com carinho gracioso,

Pastor Társis Wallace

”.(2) “No entardecer da vida seremos examinados no amor
(ver João 21:15-19.

Társis Wallace

Pastor convidado da Igreja Batista Betel de Maceió - AL.

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