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Quando a virtude atrapalha

Texto. At. 10:1-34

1 – Contextualização

Pedro havia se tornado um dos líderes da Igreja. Depois da reabilitação de Jesus e da descida do Espírito Santo, Pedro foi quase que naturalmente assumindo a liderança da igreja que se iniciava. Notamos uma nítida diferença em Pedro após isso. Assumindo a liderança, Pedro passou a viajar, pregando o Evangelho. No texto em questão, Pedro está em Jope, hospedado na casa de Simão, o curtidor, após ser chamado e ressuscitar Dorcas. Na casa de Simão, durante um período de oração, Pedro tem uma visão onde aparecem diversos animais, que de acordo com a tradição judaica eram considerados impuros e era proibido de serem tocados e muito menos cosumidos, e uma voz mandando Pedro matar e comer. Pedro, agora assumindo a postura de um líder religioso, precisando ser um exemplo, zeloso das tradições e das regras do judaísmo, se recusa a obedecer, argumentando que, como judeu, nunca havia comido carne imunda. Um verdadeiro guardião das virtudes consideradas importantes e essenciais. Na verdade Pedro esqueceu que, como seguidor de Jesus, esteve em muitos lugares, fez muitas coisas e participou de muitas festas que não condiziam com a vida de um bom judeu e que, como discípulo, deve ter sido criticado na época, como Jesus foi. Mas agora, como um líder, se apega à postura virtuosa: não pode se contaminar. Mas a voz argumenta que se foram criadas por Deus não podem ser impuras. Por três vezes a cena se repete sem que Pedro entenda seu significado, quando chegam os emissários de Cornélio e dali em diante transcorre o episódio que vai abrir as portas do evangelho para os gentios, para o mundo.

2 – Quando a virtude atrapalha

Aos olhos da religião e da sociedade da época, a atitude de Pedro era exemplar. Sua determinação em não se contaminar era uma virtude, não somente de acordo com os costumes da época, mas também como obediência às leis dadas por Deus aos judeus. Porém aquela virtude, naquele momento e contexto, estava atrapalhando os planos de Deus, e precisava ser reavaliada. Mas como entender isso? Deus havia errado? Mudado de opinião? O certo havia deixado de ser certo? Óbvio que não, apenas que aqueles conceitos deveriam ser entendidos dentro da perspectiva correta. As virtudes são qualidades que, quando exercidas, fazem a vida melhor, se alinham com a vontade de Deus, sinalizam o Reino de Deus. Por isso, virtudes são as qualidades, não que obedecem um checklist de uma listagem imutável, mas aquelas que, naquele momento, mais se prestam para demonstrar a presença do Reino.

Se em um dado momento, no início da nação judaica, a proibição de comer carne de determinados animais significava, obediência, cuidado sanitário e uma das características que marcavam um povo especial, no momento do surgimento da igreja, talvez essas necessidades não fossem mais tão prementes.

Se a criação de uma religião ligada à raça, onde a mistura fosse proibida, fosse necessária para a criação de uma identidade nacional vinculada à pessoa do Criador, com o surgimento agora da igreja universal, onde todos teriam acesso à Deus, essa proibição não mais seria necessária, pelo contrário. E Deus precisava mostrar e tratar isso.

Interessante notar como Deus foi criando as condições e preparando o terreno para essa nova visão da igreja: primeiro chama Paulo lá no caminho de Damasco, um homem culto, preparado para conversar com todas as culturas da época, contextualizar a mensagem, depois muda a perspectiva e os valores de Pedro, o líder da igreja e depois, juntos, os dois conseguem convencer toda a liderança de que aquela era a vontade e a orientação de Deus.

Muitas vezes se consideramos como virtudes desejáveis as qualidades consagradas, ou constantes de uma lista onde podemos conferir a qualquer momento, podemos correr o risco de com nossa boa vontade e virtudes estarmos sendo obstáculos à vontade de Deus. Porque a virtude verdadeira é a qualidade que, naquele momento, naquela circunstância mais reflete e auxilia o Reino de Deus naquele lugar. Isso não é relativismo. É saber que para se cumprir os desígnios de Deus é mais importante estar em constante comunhão e descobrir a cada momento como Ele espera que ajamos, do que cumprir ou obedecer regras cristalizadas e estabelecidas.

Outros exemplos:

Lc.7:36-50, Mt.26:6-14 – Uma mulher despeja um vaso de perfume sobre Jesus. Os discípulos ficam indignados e argumentam que aquele perfume caro (um ano de salário de um trabalhador) poderia ajudar a diversas pessoas necessitadas. Intenção e argumento e muito bons, mas fora da perspectiva de Jesus. Era mais importante através daquele ato dar testemunho da posição de senhorio de Jesus do que atender à demanda corriqueira e recorrente, embora justa, de atender às necessidades dos pobres.

Mc.2:15-20 – Jesus estava comendo na casa de Levi e com ele diversos publicanos e pecadores. Os fariseus estranham. Como ele, um rabi, um homem de Deus, se assentava com os pecadores? Preocupação interessante: não devemos evitar o contato com os pecadores, nos mantermos afastados do mal e do pecado? Porém, para Jesus, essa virtude impedia que o evangelho se aproximasse daqueles que realmente precisava, impediam que o médico se aproximasse dos doentes.

3 – Conclusão

As virtudes que pregamos e procuramos viver não devem ser apenas qualidades separadas em uma lista, mas o fruto da consciência da vontade de Deus para cada momento, obtida da convivência diária e constante com Deus.

Que nossas virtudes e boas intenções não sejam empecilhos à graça de Deus.

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