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Novas Palavras

Noé Stanley Gonçalves

Textos: Gênesis 2:4-8,18-25; Atos 2:1-13)

(Pregado no culto de organização da Igreja Cristã de Brasília em 01/10/1989)

 

INTRODUÇÃO:

O tempo do começo é tempo do novo, é tempo de encantamento, de enamoramento, de paixão. É um tempo em que o mundo é virgem e as palavras ainda não estão gastas porque os sentimentos não perderam o seu frescor. É tempo de desafio em que as necessidades geram criatividade, não para inventar de novo a roda, mas para salvar a roda do prosaísmo.

Evidentemente quando vamos falar aqui de novas palavras não se trata de um dicionário nem da lista telefônica. Todas as palavras novas que são para ser ditas serão novas até que sejam ditas, e depois de ditas precisarão ser descobertas outra vez.

Algumas palavras novas, belas e maravilhosas, que estão no programa desta igreja:

 

UMA NOVA RELAÇÃO COM A NATUREZA

É o momento da solidariedade ecológica em que o homem é feito para um jardim e um jardim é feito para o homem. É o momento em que terra ainda não produzia porque ainda não tinha sido cultivada, e o homem não sabia porque não tinha cultivado. É o momento quando o indivíduo não está no lugar do social e o social não está no lugar do individual, mas se relacionam dialeticamente nesta solidariedade. Um lugar melhor para se viver – é isso que é o trabalho da Igreja.

O trabalho da Igreja não é apenas um preparar para um outro lugar no futuro para se viver, mas transformar este lugar onde vivemos em lugar melhor porque Deus o fez para que vivéssemos nele da melhor maneira que pudermos. Uma palavra que não separa o homem que vai para céu do homem que pisa na terra, e que não separa o servir a Deus do construir o mundo de Deus. Que não separa a espiritualidade da responsabilidade com o mundo que Deus criou.

Textos bíblicos para reflexão: Salmo 19; Mateus 17:1-8; Romanos 8:18-25. Leitura: “Um projeto de espiritualidade integral”, de Caio Fábio d´Araujo Filho.

 

UMA NOVA RELAÇÃO HISTÓRICA MEDIADA PELO TRABALHO

Todo homem se reconhece naquilo que faz, e se reconhece mais no trabalho que não é alienado, no trabalho que não se destina à acumulação e à dominação, mas ao sustento e à produção do mundo de Deus.

Deus coloca o homem num jardim para que ele o cultive, e é cultivando o jardim que o homem se descobre.

Que na nossa relação espiritual tenhamos uma palavra para o trabalho e também uma palavra para aquele que trabalha. Quando esta palavra é dita, nós descobrimos que o trabalho é fonte de prazer, que o trabalho não é uma maldição, e que no trabalho nós nos parecemos com Deus. Não é qualquer trabalho, mas naquele trabalho que nós nos reconhecemos naquilo que fazemos. Em penso que hobby também é trabalho. Eu penso que a verdadeira palavra sobre o trabalho é aquela que diz, não que nós trabalhamos para descansar, mas que nós descansamos para trabalhar e que temos prazer naquilo que fazemos. No trabalho a pessoa deve se sentir dignificada como imagem de Deus naquilo que faz. Do contrário a nossa palavra será velha palavra ideológica que procura encobrir a exploração das pessoas através do trabalho.

Devemos falar da dignidade do trabalho, do Dia do Trabalho, sem nos esquecermos do trabalhador. Não podemos nos esquecer que toda uma multidão se assenta conosco à mesa: o que plantou, o que colheu, o que transportou, o que vendeu. Esta nova palavra da relação histórica do homem com o trabalho é a palavra libertadora que a Igreja deve falar. Que esta Igreja fale da dignidade daquele que trabalha como diz a Palavra de Deus: “Digno é o trabalhador da recompensa do seu trabalho.”

Textos bíblicos para reflexão: Salmo 128:2; Isaias 64:4; Lucas 10:7; 1 Timóteo 5:18; Marcos 2:23-28; João 5:17; Lucas 15:19; e Tiago 5:1-6.

 

UMA NOVA RELAÇÃO CULTURAL

A palavra é inventada na relação e é um contrato social. A construção da linguagem é um contrato social.

Deus traz os animais para o primeiro home colocar nomes neles. E, assim, sentado numa pedra – primeiro trono do Senhor da criação – ele aponta para os animais e dá nomes a eles. O processo de aprender é o processo de discriminar. A palavra inventa o mundo: “No começo era o Verbo…”

O mundo está aí à espera da descoberta. E descobrir estas novas palavras para se comunicar é tarefa da Igreja. É a palavra nova num novo começo. O homem empolgado já sabia dizer o nome das coisas. O que ele não sabia era dizer um nome para si mesmo.

 

UMA NOVA RELAÇÃO INTERPESSOAL

De maneira poética a Palavra diz que Deus fez o homem dormir e tirou um pedaço dele. Ele olhou todos os animais, mas não achou nenhum animal que lhe correspondesse. Mas no dia em que o homem olhou para a mulher e a mulher para o homem, aí, no espelho do outro, ele se descobre.

Esta nova relação interpessoal é aquela que só sabe dizer “Eu” porque disse “Tu”, como diz Martin Buber. É nesta descoberta da relação que, diz o texto, o homem exclamou: “Esta sim…!” Quando eu digo “Esta sim” eu digo “eu sim”. Toda vez que fundo o direito do outro eu asseguro o meu próprio direito, e toda vez que eu nego o direito do outro eu nego a mim mesmo. Eu descubro que eu sou porque o outro é. Eu sou porque sou solidário. Até então o homem era solitário. Mesmo com Deus, sozinho o homem é solitário. Pode-se estar com Deus e estar só, mas quando se estiver com o outro não se está só e se está com Deus.

 

UMA NOVA RELAÇÃO DE PODER

O homem e a mulher olham um para o outro, os dois estão nus e não se envergonham. A diferença em relação à nudez é toda a carapassa que nós colocamos para nos defender do outro e para dominarmos o outro. A relação de poder que se anula porque não é relação de poder, é a relação de amor, a relação de afeto, a relação de companheirismo e a relação de solidariedade. É quando nós usamos a sedução, não para dominar o outro, mas para atrair o outro. Não para nos escondermos e tirarmos vantagem do que sabemos do outro, mas quando lhe damos vantagem mostrando quem nós somos.

Eu acho que é constrangedora a nudez solitária, mas não é constrangedora a nudez solidária, porque assim como nós somos vistos, nós também vemos e não há armas de dominação.

Realmente eu desejo que esta palavra seja uma palavra que a Igreja diga com toda ênfase: uma nova relação de poder. Ou o amor destrói o poder ou o poder destrói o amor. Há sempre uma relação de poder que o homem tem. É a de que a relação social tem horror ao vazio de poder. Por isso cada um corre depressa para ocupar o lugar de poder com medo que outro o ocupe. Eu vou ficar muito feliz com a palavra nova no que dia em que nós ocuparmos o poder para destruir o poder. Que o nosso programa do dia a dia seja destruir a relação de dominação, e que nós estejamos dispostos a analisar nossa relação com toda a clareza. Que toda vantagem possa ser desmascarada. Que a Igreja, ao fazer isso consigo mesma, tenha autoridade para fazer isso com a sociedade.

 

UMA NOVA RELAÇÃO HERMENÊUTICA, isto é, uma nova chave de interpretação.

Estas pessoas reunidas aqui em Atos 2 estão fazendo uma coisa que nós não gostamos de fazer em nosso século: elas estão esperando. Elas estão esperando a manifestação de Deus lhes dizer o que devem fazer. Do contrário nós caímos numa charge alemã que dizia: “Eu não sei para onde, mas cada vez eu vou mais depressa”. Não importa ir mais depressa. Importa que saibamos para onde estamos indo.

Qual é a nova chave hermenêutica da Igreja? O que ela traz de novo ao mundo? É a relação entre Cristo e o contexto. É o evento crístico, é a cruz a nova chave que a Igreja tem para interpretar o mundo. Nenhuma chave esotérica, nada que se passou n´algum outro planeta, mas o que se passa aqui e agora com as pessoas quando Deus se fez carne e habita entre nós, isto é, quando Deus se torna história A Igreja descobre uma nova chave que é a chave da historicidade. Um teólogo latino-americano disse que não adianta fazer uma teologia contextualizada, comprometida, se levarmos uma vida alienada, se as categorias que nós vivemos de fuga, de escape em que a Igreja é apenas uma arca aonde nós vamos nos salvar de grande dilúvio universal. Se não há uma relação de solidariedade com a sociedade, então não vamos descobrir a aplicação da mensagem do Evangelho à história.

Só sendo solidário com as pessoas é que podemos vivenciar esta chave que é chave de carne e osso. Não é um novo conceito teológico revolucionário. Não é um conceito, é uma pessoa. A Igreja não tem que esperar uma nova idéia. A Igreja só tem que encarnar. A encarnação é a nova chave teológica, a nova palavra que é dita pelo Evangelho.

 

UMA NOVA RELAÇÃO COM DEUS QUE É A VIDA NO ESPÍRITO

Moisés teve uma experiência sensacional. Sensacional porque foi feito sensação. Ele estava cansado de fazer tudo sozinho. Coloca seu problema a Deus e Deus diz: “É fácil, Moisés. Eu lhe dei n de poder. Se você quiser eu pego n e divido por 70 e aí você vai ficar descansado. Você vai ter 70 vezes menos poder, mas em compensação vai ter 70 vezes menos trabalho.” E Moisés aceitou. Reuniu os anciãos e foi todo mundo para a tenda para a imposição de mãos, e, de repente, começou todo mundo a profetizar. Dois, por motivo qualquer, ficaram no meio do Acampamento e lá começaram também a profetizar. Josué ficou escandalizado, ficou ofendido porque daquele jeito não iria ter ordem naquela congregação. Corre para Moisés e disse: “Moisés, tem dois falando lá fora de lugar, de ordem.” E Moisés falou: “Josué, você estar com ciúmes por mim?” Moisés foi lá no ponto: “Você está com ciúmes por mim? Oxalá todo o povo de Deus fosse profeta!”

Pentecoste, a relação com Deus no Espírito, é a relação em que todo o povo de Deus é potencialmente profeta. Esta é a nova palavra que precisa ser dita por uma Igreja que pretende alcançar o Coração do Brasil. Se o Pastor Julio tivesse mil vozes, como dizia o Reitor do Seminário: “Ah! Se eu tivesse mil vozes”. Com uma só já enchia o Seminário. Mil vozes de um não são suficientes. As nossas vozes no dia a dia onde nós estamos, na vida do Espírito, onde cada um não precisa de autorização por escrito para ser cristão porque isso vem da relação com Deus. Não precisa de carta de recomendação da Igreja porque nós somos a Carta Viva.

Nós falamos muito do sacerdócio universal dos crentes. Talvez estejamos precisando é da profecia universal dos crentes porque aí podemos fazer bastante barulho, não com o que falamos, mas com o que vivenciamos no meio da sociedade.

 

UMA NOVA RELAÇÃO SOCIAL OU UMA NOVA PRÁXIS

Onde é que invento isto? É que as pessoas do mundo inteiro estavam ali e cada um ouviu falar em sua própria língua. Todos falavam. O que isto quer dizer? Todos deveriam falar aramáico ou o grego koinê como segunda língua. Bastava falar uma dessas línguas e todos ouviriam. O que quer dizer falar a língua do outro? Psicologicamente isso se chama “descentração”. É quando nós não queremos que o outro se torne igual a nós para o entendermos; nós nos tornamos igual ao outro para que ele nos entenda. Primeiro para entendê-lo, e depois para que ele nos entenda. Não é esse o sentido da encarnação? Deus poderia ter mandado os Anjos, mas Ele se fez carne e se tornou um de nós. Habitou entre nós. E assim Ele nos evangeliza a paz.

Na Oração Sacerdotal Jesus não quis dizer (João usa a categoria “mundo”) que nós procurássemos nos afastar da sociedade porque é por causa da sociedade que Jesus Ele veio. É por causa da sociedade que esta Igreja é organizada hoje. É por causa deles que nós existimos, isto é, por causa de nós porque também fazemos parte da sociedade. Quando nós fazemos oposição Igreja x sociedade, nós nos esquecemos que a Igreja toma tudo o que ele tem (linguagem, costumes, símbolos, etc) da sociedade que existe. Nós apenas, no Evangelho, fazemos uma nova tradução do que existe no social e procuramos voltar ao social com um novo significado. A questão do Evangelho não é fazer de novo o que existe, e sim trazer um novo significado em Jesus Cristo.

 

CONCLUSÃO

Gostaria de terminar, irmãos, dizendo que uma nova comunidade nasceu daí. Uma comunidade que tinha tudo em comum. E nós vamos aprender em atos como esta comunidade trilhou este caminho. Vamos aprender como ela perdeu este caminho.

Nós também, com humildade, hoje dizemos hoje dizemos que estamos procurando um Caminho Novo e sabemos que nesta procura vamos perder o caminho. Haverá muitas ambigüidades no que nós falamos. É só procurando saber o que o outro ouviu e viu, e revelando a ele o que ouvimos e vimos, é que vamos dizer a palavra sem ambigüidade.

 

Que o poema CANÇÃO AMIGA, do meu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, seja o programa desta nova Igreja:

 

Eu preparo uma canção

Em que minha mãe me reconheça,

Todas as mães se reconheçam,

E que fale com dois olhos.

 

Caminho por uma rua

Que passa pro muitos países.

Se não me vêem, eu vejo

E saúdo velhos amigos.

 

Eu distribuo um segredo

Como quem ama e sorri.

No jeito mais natural

Dois caminhos se procuram.

 

Minha vida, nossas vidas

Formam um só diamante.

Aprendei novas palavras

E tornei outras mais belas.

 

Eu preparo uma canção

Que faça acordar os homens

E adormecer as crianças.

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