Faz escuro, mas eu canto
Sermão: “FAZ ESCURO, MAS EU CANTO” – Lucas 24:13-35
Julio Borges Filho
O poeta Thiago de Melo, em plena época de chumbo no Brasil, em 1965, escreveu um livro fascinante: Faz escuro, mas eu canto, inspirado no poema do mesmo nome. No livro há também o memorável poema “O estatuto do homem”. O livro rendeu até música num concerto comemorativo dos 80 anos do poeta no teatro Amazonas: “Faz escuro, mas eu canto, porque a manhã vai chegar…”
Há momentos em nossa vida de completa escuridão. O momento de escuridão é fértil porque é grávido de esperança. Há qualquer momento a luz pode chegar. A página do Evangelho que fala da caminhada dos discípulos a caminho de Emaús ilustra muito bem isso. Paremos diante de tão belo texto. Ele é atual para nossa vida.
O caminho da desesperança, vrs. 13-27
É o caminho que desce de Jerusalém para Emaus. Dois discípulos de Jesus caminhavam lentamente os dez quilômetros numa descida, e seus olhos estavam fechados… Viam a estrada em plena tarde, mas, desiludidos, não viam a nova e esplendorosa realidade. Conversavam, e a conversa girava em torno do julgamento e morte de Jesus. Conversar e discutir é próprio do ser humano, pois fomos criados para a relação. Daí o dom da linguagem falada. Não havia consenso entre eles, tanto que discutiam. Mas o centro da conversa e da discussão era Jesus. É aí que a promessa da presença de Jesus se concretiza: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou no meio deles.” O Cristo ressurreto caminha com eles e eles não o reconhecem. O desespero cega: “Os seus olhos estavam como que impedidos de reconhecê-lo,” salienta o evangelista.
Jesus toma a iniciativa e entra na conversa com uma pergunta: “Que isso que vos preocupa e de que ides tratando à medida que caminhais?” A iniciativa da salvação é tristeza. A tristeza paralisa, mas a alegria faz andar. A resposta da Cleopas é uma pergunta impaciente: “És o único, porventura, que, tendo estado em Jerusalém, ignoras as ocorrências destes últimos dias?” Jesus responde também perguntando: Quais? Ele, que sofreu tanto em nosso lugar não tem mágoas ou ressentimentos no coração… A explicação dos dois discípulos (vrs. 19 a 24) descreve os fatos centrais de nossa fé, fala da desesperança do coração de ambos, a conversa das mulheres dando notícia da ressurreição, e a reação dos discípulos.
Um convite estranho a um estranho, vrs. 28-31
Jesus os repreende: “ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram!” Em seguida dá uma aula de Antigo Testamento… Os discípulos são despertados e sentem seus corações arderem na exposição da Palavra. Enfim chegaram à aldeia de Emaus, e Jesus faz menção de seguir em frente, mas eles o obrigam a ficar com um convite singular: Fica conosco, porque é tarde e o dia já declina. E Jesus entrou para ficar com eles. Jesus nunca rejeita um convite… Na carta apocalíptica à Igreja de Laodicéia, Ele nos desafia: “Eis que estou à porta de bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, eu entrarei em sal casa, com ele cearei e ele comigo.”
“O coração tem razões que a própria razão desconhece,” afirmou Pascal. O convite dos discípulos só pode se explicar assim. Convidar um estranho para se hospedar com eles é coisa de corações aquecidos. Jesus serve a mesa, abençoa o alimento e, no partir do pão, seus olhos se abriram e eles o reconheceram. Alguém já disse que Jesus rasgou o pão (semelhante ao pão sírio) e eles viram o sinais dos cravos nas mãos dele. Sim, o Filho de Deus levou para o céu algo que ele não trouxe de lá: a sua humanidade. A visão dos discípulos do Cristo ressurreto foi rápida: “Ele desapareceu da presença deles”. Desapareceu, mas ficou para sempre entronizado em seus corações: “Porventura não nos ardia ocoração, quando ele, pelo caminho, nos falava, quando nos expunha as Escrituras?”
O caminho de volta: faz escuro, mas eu canto, vrs. 32-35
“E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém…” No caminho de Jerusalém para Emaus, uma descida, andavam devagar, paravam… Estavam tristes. Mas no caminho de Emaus para Jerusalém, uma subida, em plena escuridão da noite, corriam alegremente porque tinha uma boa nova para contar aos outros. A escuridão fica clara com o canto da alegria. A manhã da ressurreição já nascera em seus corações.
Há fases em nossa vida que parece que todas as saídas foram fechadas. Não vemos solução. Mas a presença do Senhor que venceu a morte e as trevas, nos faz cantar e ter novas perspectivas. O sol da manhã vai chegar.
Vale a pena ouvir a poesia do Thiago de Mello em plena época escura da ditadura no Brasil:
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.
É assim que se vence a escuridão nas crises da vida. Há um companheiro no caminho que não nos abandona. Ele caminha a nosso lado na estrada da desesperança, ceia conosco em plena noite, e coloca a manhã da ressurreição em nós colocando brasas em nossos corações. Com Ele aprendemos a ser humanos a serviço do homem. Temos uma missão: humanizar o mundo escuro pelo ódio, preconceito, dor, tristeza e desesperança. David Livingtone, o grande missionário inglês na África, disse que o que lhe dava coragem para continuar num mundo hostil, eram as palavras do Cristo ressurreto: …E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século – Mateus 28:20b.
Por isso, aprenda a cantar como os discípulos de Emaus na escuridão. Cante comigo que a vida, e não a morte, tem a última palavra. Vivamos a ressurreição!…