1964: NUNCA MAIS
Julio Borges Filho
Eu tinha apenas 19 anos… Após assistir um filme no cinema Trianon, em Recife, deparei com soldados do exército no centro da cidade atirando com metralhadoras. Operários desciam das construções e, eu, rápido, peguei um ônibus elétrico e retornei à segurança do Colégio Americano Batista. O Golpe Militar de 31 de março de 1964 estava em curso e derrubou o presidente João Goulart. Dias e anos sombrios nos aguardavam. Ainda no refúgio do colégio recebi, através de uma irmã, muitos livros considerados subversivos para jogar no canal do Derby. Guardei algumas preciosidades como “Revolução e contra revolução”, “Senhor Deus dos desgraçados”, e alguns cadernos do povo.
Em 1965, já no Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil e com o Golpe já bem consolidado, deparei com algo sinistro dentro de igrejas evangélicas. Denúncias de pastores, jovens, e alguns líderes pelos seus próprios irmãos e colegas de ministério. Fiquei chocado e tive uma crise existencial profunda. Decidi sair do seminário, e, só não o fiz, por três intervenções divinas: 1ª) Tive um bom conselheiro, Pr. José Florêncio Rodrigues Jr, então meu cunhado, que me aconselhou não tomar uma decisão com base na dúvida; 2ª) a ação pastoral de José Munguba Sobrinho, pastor da Igreja Batista da Capunga, em defesa de suas ovelhas presas, na maioria jovens, nos quartéis e delegacias de Recife; e 3ª) uma longa carta de minha namorada, Gislene, hoje minha esposa a 50 anos, dando-me uma orientação belíssima: “Se 99% for escuridão e apenas 1% for luz, tome uma decisão baseado no 1% de luz.” Permaneci no Seminário, um refúgio contra o golpe porque dirigido por uma norte-americano, mas um agente do SNI foi convidado para ensinar filosofia. Ali, após meu casamento e ordenação, morei num apartamento de dois quartos que serviu de abrigo para meu irmão Alírio, de saudosa memória, que se tornou vice-presidente da UNE e um ativista político no meio universitário.
Pretendo retornar a Recife para escrever, revendo os lugares onde vivi oito anos, minhas memórias de uma página triste do Brasil da qual fui testemunha viva. E agora, quando muitos evocam a ditadura militar e com militares no poder, quando novamente as igrejas evangélicas assumem posturas semelhantes, tenho de me manter firme numa postura profética para que a ditadura nunca mais volte ao Brasil, mesmo em meio a tanta intolerância e ódio. Os tempos são outros e outros golpes com aparência de legalidade são executados como o golpe parlamentar de 2016 que derrubou a presidenta Dilma Rousseff, e o golpe judiciário via Operação Lava Jato que prendeu o presidente Lula e que abriu as portas para a eleição do atual presidente. Por detrás de tudo estão antigos e novos atores a serviço de um sistema econômico e político que impede o nosso grande país de assumir o seu devido lugar no concerto das nações e exclui milhões de brasileiros semeando a miséria de muitos e o acúmulo de bens de poucos.
Um grande líder batista, em apoio ao golpe militar de 1964, convocou um jejum como base no castigado versículo “Se o meu povo se humilhar e orar… e sararei a sua terra.” Objetivo: combater o comunismo. Pois bem, a ditadura militar demorou vinte anos com um histórico de violências, torturas e mortes indescritíveis. Morreu o velho e alienado líder, mas ficou registrado o seu funesto jejum. Que não se use mais a oração e o jejum para apoiar a violência e as armas, e que a ditadura não volte nunca mais.