SEM MEDO DE IR PRO CÉU
SEM MEDO DE IR PRO CÉU
Em memória do Pastor Miquéias da Paz Barreto
Recebí hoje 08.06.2021, com profunda tristeza, a morte do Pastor Miquéias, de COVID, em Recife. Tristeza e uma imensa saudade do seu jeito de ser, do seu fervor missionário, de seus sermões vibrantes e de suas histórias de fé. Fomos colegas no Seminário Teológico Batista do Norte do Brasil na famosa e revolucionária turma de formandos de 1969. A última vez que o vi foi quando ele veio a Brasília pregar na Igreja Memorial Batista e já faz muitos anos. Recentemente ele publicou no facebook: “Os pastores estão com medo de ir pro céu”, acho que para criticar pastores nesta pandemia.Eu o adverti: “Amigo, não é medo, mas por que antecipar a ida sem cumprir plenamente a nossa missão?” Ele não me ouviu e resolveu antecipar a sua ida tendo muito ainda a oferecer e, em breve, espero reencontrá-lo em glória. Enquanto isso vou vivendo cuidadosa e alegremente.
Ouvi dele muitas histórias, umas sublimes e outras irreverentes. Relato apenas três aqui.
– A primeira foi quando ele era pastor em Palmeiras do Índios nas Alagoas. Disse-me que vinha de carro de Natal e ficou, já em Pernambuco, sem gasolina e sem dinheiro. Mas a gasolina deu para chegar no CEO – Cidade Evangélica dos Órfãos, perto de Recife, fundada e dirigida pelo seu saudoso pai. Chegou na hora do jantar quando uma das mulheres que dirigia uma casa de crianças de 3 e 4 anos chegou avisando que estava sem leite para as crianças. Seu pai mandou procurar leite nas outras casas e todas nada tinham. Ele, então, olhou para Miquéias e lhe pediu dinheiro emprestado para comprar algumas latas de leite numa farmácia. Miquéias disse que estava sem dinheiro e veio até ele para pedir dinheiro pra gasolina. Seu pai, homem de fé, disse: “Já sei. Deus está me testando.” E convidou a todos os presentes para se ajoelharem e fez uma curta oração nestes termos: “Senhor, este trabalho com os órfão é Teu, e não meu. Portanto, a falta de leite está diante de ti”. Levantou, e mandou as mulheres de volta para suas casas. A da casa dos de 3 e 4 anos protestou dizendo que ninguém iria dormir naquela noite com o choro das crianças, e ele retrucou: “Deus tapará a boca das crianças”. Meia hora depois alguém bate palmas na cancela de entrada do CEO. Miquéias e o pai foram atender. Era um motorista que estava levando de São Paulo para Recife uma carga de produtos da Nestlé. O caminhão virou na estrada bem perto da cidade dos órfãos. O motorista ligou para o diretor da seguradora da carga que era um diácono da Igreja Batista da Capunga em Recife, e este lhe orientou a doar toda a carga ao orfanato que a seguro a cobriria. E a festa foi grande. A Kombi do orfanato fez seis viagens para trazer toda a carga e a meninada furava lata de leite condensado e o bebia com alegria sob protesto das mulheres cuidadoras das casas com medo das crianças terem diarreia. O pai de Miquéias, porém, as repreendeu dizendo: “Deixem as crianças em paz. É coisa de Deus e precisamos celebrar com alegria.” Miquéias me confessou que o caminhão virou bem na hora da oração de seu amado pai. A oração inspirada por Deus tem resposta instantânea quando há urgência porque as necessidades humanas são prioritárias na economia divina.
– A segunda histórias eu ouvi dele em Ilhéus em 1977 quando eu era pastor da Primeira Igreja Batista e o convidei para uma série de pregações. Logo que o recebi no aeroporto fui logo perguntando: “Como está o Projeto Renascer?” Era um projeto que ele lançou na Igreja Batista da Concórdia de recuperação de prostitutas do Cais de Santa Rita em Recife. Ele me respondeu: “Fiz uma pesquisa no cais e descobrir que todas as prostitutas de lá são crentes.” Fiquei chocado, mas ele me explicou que a Assembleia de Deus fazia cultos ao ar livre na zona de prostituição do cais e os pregadores sempre faziam um apelo às pecadoras para aceitarem Jesus como Salvador. As pobres mulheres respondiam afirmativamente e já se consideravam crentes. Ele me contou isso para condenar a evangelização superficial sem sensibilidade humana para reabilitar as pessoas. Evangelizar é pescar o peixe e depois tratá-lo.
– E a terceira história foi num sermão contra o legalismo hipócrita pregado na minha então igreja em Ilhéus na mesma época. Contou que foi pregar numa igreja em Recife e, após o sermão, fez veemente apelo para consagração de vidas. A igreja toda veio à frente menos um velho diácono. Após o culto o diácono aproximou-se dele se justificando: “Pastor Miquéias, eu não fui à frente porque não preciso. Sou um crente consagrado a Deus. Você precisa ver meu quarto de dormir. Tem dois furos feitos nos ladrilhos por meus joelhos de tanto eu orar. Pastor, quando eu oro o céu treme!…” Miquéias respondeu na bucha: “Só se for o céu de sua boca, meu irmão, porque o céu do meu Deus não vai tremer com a oração de um orgulhoso como você.”
Planejava ir a Recife em breve para escrever um livro de memórias sobre o golpe militar de 1964 nas igrejas e pretendia visitá-lo. Certamente iria ouvir gostosamente muitas histórias. Mas Miquéias, que não tinha medo de ir pro céu, foi embora deixando uma folha de serviços maravilhosa na militância do Reino de Deus na terra. Foi, porém, antes do tempo deixando em nós uma infinita saudade. Que as consolações de Deus sejam abundantes sobre Dione, sua esposa, sobre seus filhos, netos, genros e noras, e sobre sua amada igreja.
Julio Borges Filho