Salve-se quem puder
AS BASES PARA UMA TEOLOGIA ECOLÓGICA
I – Contextualização
A ecologia é uma preocupação hodierna. Ela passou a fazer parte de nossa pauta de discussão a partir do momento que nos demos conta de que, seja pelo número de pessoas que somos ou que poderemos ser, seja pelo poder que já dispomos à nossa disposição, a sobrevivência da raça humana está ameaçada e a destruição completa deixou de ser uma especulação escatológica ou uma obra de ficção, mas uma possibilidade real.
Portanto, não há uma preocupação formal ou uma formulação explícita sobre a preocupação com o meio ambiente ou com a natureza nas escrituras. Essa era uma preocupação que não passava por nenhuma pessoa daquela época. Não havia necessidade. Se fosse nos nossos dias , a façanha de Sansão ao matar um leão com as próprias mãos, ao invés de lhe render fama, provavelmente renderia um processo pelo Ibama, ou algum órgão parecido. Mas podemos extrair alguns princípios sobre a importância, a função e o papel da natureza na obra de Deus de tal forma a criar as bases para uma teologia sobre a natureza e o meio ambiente.
O objetivo dessa teologia, como toda teologia, seria tentar ver a realidade com os olhos de Deus: Por quê a natureza foi criada? Qual sua função? Qual sua importância espiritual? Qual seu papel na vida da humanidade e nos planos de Deus?
A partir das respostas a essas perguntas tentar desenvolver uma série de conceitos que nos levem a ver a preocupação pela defesa da criação não como um simples modismo ou como uma preocupação humana, mas uma questão espiritual, plenamente contida nos planos de Deus, tanto nos originais quanto nos da redenção. Que, ao final, encaremos nossa responsabilidade com a natureza no mesmo nível que encaramos a evangelização: que o evangelho do “ide e pregai” proponha a redenção tanto do homem caído como da natureza contaminada pelo pecado. Que, assim como o homem redimido não deixa de ser pecador, mas passa a ter um nova visão de Deus, do homem e do mundo, que vai redirecionar toda sua vida, valores e atitudes, que assim também em relação a natureza ele tenha uma visão diferente que o leve a novos valores e atitudes.
Em Rom.8:19 e 22 Paulo diz que “a ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus” e que “toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora”. A luta pela preservação da obra de Deus deveria ser uma iniciativa dos seus filhos. Deveríamos ser os primeiros a ouvir o seu gemido e sua angústia e correr em seu auxílio, mas infelizmente, como em quase todas as questões que nos obrigam a sair de nossos limites confortáveis e seguros, somos levados a reboque e somente assumimos posição quando todo o mundo já o fez. Perdemos o vanguardismo da voz profética. Mas, como diz o ditado: antes tarde do que à noite…
II – Base bíblica
1 – A Criação
Vamos aqui apenas levantar alguns pontos para dar inicio à discussão. É claro que o texto mais importante sobre o assunto é a própria descrição da criação, onde as escrituras mostram como e porque tudo foi feito.
Em Genesis temos duas descrições distintas da criação: uma, em Gênesis 1:1 a 2:3 onde a criação é descrita de forma mais genérica, mostrando a ordem da criação e a relação de supremacia do homem sobre a natureza, porém o foco aí é o poder criador de Deus. A outra descrição acontece em Gênesis 2:4-25 e é um relato “humano”. O foco é o homem. A criação da natureza é descrita intimamente ligada à vida do homem, com definição da responsabilidade de cada um: ao homem cabia cultivar e guardar o jardim, à natureza cabia suprir o homem de suas necessidades. Interessante notar que o estado natural do homem e da natureza, sem o pecado, não impedia a intervenção do homem. O cultivo pressupunha a atuação do homem para buscar produtos específicos e desejados. Porém não era uma relação predatória. Continuava sendo uma relação onde a natureza se mostrava dócil e generosa e o homem seu protetor. Um dependia do outro. Esse equilíbrio não era uma generosidade a mais de Deus: fazia parte inseparável do plano de Deus, representava a proposta de vida de Deus ao homem.
A relação era tão importante que o elemento de controle que Deus colocou para provar a fidelidade do homem estava num elemento da natureza: de uma árvore específica o homem não poderia desfrutar. A árvore do conhecimento do bem e do mal não estava disponível, era disponibilidade específica de Deus. A fidelidade e obediência do homem se expressariam pelo entendimento e manutenção de sua responsabilidade com a natureza, conhecendo e obedecendo seus limites.
2 – A Queda
Em Gênesis 3 vemos a descrição da queda do homem e as suas consequências. O homem pecou, desobedeceu, quebrou a relação que tinha com Deus e passou a sofrer as consequências disso: em primeiro lugar viu sua semelhança com Deus ser afetada, perdeu a imortalidade; sua pureza virou imaturidade (notar as desculpas infantis que deu a Deus); desequilibrou sua relação com seu semelhante, introduziu na relação o poder e a dominação; perdeu seu poder natural sobre a natureza, para retirar dela seu sustento deveria dominá-la, usar força, disputar poder; foi tomado por sentimentos novos e estranhos: medo e vergonha.
Vamos analisar um pouco mais as consequências da queda na relação do homem com a natureza. Em primeiro lugar a relação de harmonia foi quebrada, a natureza não era mais amigável. Passou a ser hostil. Novas sementes surgiram, cardos e abrolhos. A natureza oferecia a partir daí produtos não desejáveis, e era preciso separá-los. O trabalho necessário não era mais prazeroso, causava dor e cansaço. O cultivo não era mais uma atividade que trazia satisfação, mas uma necessidade da qual dependeria a sobrevivência. As necessidades do homem causavam dor na natureza: para esconder sua vergonha um animal foi sacrificado…
A presença do anjo armado à porta do jardim dizia que o Éden, como foi criado, proposto e experimentado não estava mais disponível ao homem. Um novo local com novas regras e novas relações deveria ser achado.
Mas uma das consequências mais trágicas da queda foi o homem perder a noção da necessidade que ele tinha do equilíbrio com a natureza, que sua vida dependia disso, que ele foi feito como parte desse equilíbrio e que a quebra representava uma condenação à insatisfação e um perigo à sua sobrevivência. Com a nova situação o homem percebeu que teria que lutar com a natureza para sobreviver, mas o que não percebeu foi que vencendo a natureza e aniquilando-a também significava sua própria morte. O pecado, ao contaminar o homem e a natureza, quebrou a relação entre os dois e escondeu essa necessidade.
3 – A Redenção
Através de Jesus, Deus propõe a recuperação da proposta inicial da criação. Não que o portão do Éden fosse reaberto, tudo esquecido e o pecado extirpado da face da terra. Ele e suas consequências serão nossos companheiros até a consumação final, quando, aí sim, ele e todos seus penduricalhos serão lançados no lago de fogo. Mas até lá a proposta da redenção era pagar o preço estabelecido pelo pecado, pago pelo sangue e morte de Cristo, e propor uma nova vida ao homem, com novas bases, novos valores e novas relações.
Ao homem, separado de Deus pelo pecado, o sangue de Jesus reparou o caminho, criou a ponte, de forma que o contato se restabeleceu. O homem não precisa mais se esconder ao ouvir a voz e o chamado de Deus.
Ao seu semelhante a nova proposta de Deus inverte a lógica, ao invés de poder, amor, (amai-vos uns aos outros como eu vos amei), ao invés de dominação, serviço (quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva).
Quanto à natureza a proposta da redenção é que também uma nova relação se estabeleça. A retirada do sustento da natureza continuará a ser difícil. Força, determinação e criatividade continuarão a ser necessárias para a produção necessária daquilo que precisamos, mas o que temos que entender é que o sacrifício de Jesus se estendeu também à natureza. O “…eis que tudo se fez novo…” abrange nossa visão e responsabilidade com a natureza. Nossa relação não deve se limitar apenas ao respeito, mas à compreensão espiritual que a condição inicial do homem implicava numa relação harmoniosa com a natureza e que a redenção de Cristo, ao refazer as relações rompidas, significa também, necessariamente uma redefinição da convivência do homem com a natureza. A natureza clama por isso: “Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós. A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus. Pois a criação está sujeita à vaidade, não voluntariamente, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será redimida do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação, a um só tempo, geme e suporta angústias até agora.” Romanos 8:18 – 22.
E, no final dos tempos, quando, aí sim, o pecado for extirpado da terra, o novo homem, sem pecado for criado, uma nova terra e novos céus também serão criados, sem a interferência do pecado. A árvore da vida será fonte de vida para todos. Todos os animais, selvagens ou não, conviverão em harmonia.
III – Conclusão
A natureza foi criada em harmonia com o homem. Isso fazia parte inseparável da proposta original de Deus. Não era uma relação bondosa simplesmente, era necessária, fundamental para a criação que Deus havia pensado.
A queda alterou tudo. A morte atingiu o homem e a natureza.
A solução proposta por Deus, através de Jesus Cristo, para a redenção do homem, deve se estender também à redenção da natureza, ao resgate de uma relação harmoniosa e íntima, como era antes da queda.