A ATUALIDADE DA REFORMA
UMA RELEITURA PARA OS NOSSOS DIAS
Cerca de quinhentos anos já se passaram, desde o dia em que Lutero pregou as suas 95 teses na porta da igreja do Castelo de Wittenberg, num gesto em que buscava o apoio do Papa à sua luta para combater a herética e corrupta prática do tráfico de indulgências no seio da igreja, e que se transformou no evento simbólico do movimento que seria historicamente conhecido como a Reforma Protestante.
A ação de Lutero, somada à de outros luminares desse movimento, como por exemplo, Zwinglio, Calvino e Melanchton teve, por certo, condicionamentos sociais, filosóficos, econômicos, políticos e tecnológicos diversos, mas o seu epicentro foi o espaço religioso de então, totalmente dominado pela Igreja Católica, com todo o seu poder econômico, político e espiritual, estribado no quase absoluto monopólio do conhecimento, especialmente do conhecimento religioso e teológico.
Esse monopólio institucional do conhecimento, sempre (ontem e hoje) nocivo e conducente ao autoritarismo, resultava em práticas manipulatórias que se constituíam em graves agressões à verdade evangélica, cuja natureza é libertadora e comprometida com a autonomia e a realização do ser humano.
Se a Reforma foi, no seu princípio, um libelo contra uma igreja distante dos princípios evangélicos e uma luta pela libertação do jugo e do poder opressor de uma instituição dominada por um clero corrupto e autoritário, ela proclamou verdades que, pelo seu alcance, terão sempre uma grande força transformadora na vida das igrejas e das sociedades alcançadas por sua mensagem.
Hoje, ao analisar o mundo e o ambiente religioso, e constatar como estão nele presentes o autoritarismo e as práticas de manipulação de pessoas, somos convencidos da atualidade da Reforma e da necessidade de a igreja resgatar suas ideias-eixo e comprometer-se em estar sempre se reformando.
Tal convicção é reforçada pela análise dos quatro anúncios sistêmicos destacados a seguir, cuja influência cumulativamente transformadora e avivadora ainda hoje é muito ausente na prática das igrejas e no mundo em que vivemos. Nesse sentido, a Reforma é um movimento sempre futurista, uma utopia ainda não realizada e um desafio sempre presente.
1). O primeiro destaque: Os reformadores anunciaram a universalização da salvação ou, do ponto de vista institucional social e político, a democratização da salvação.
A redescoberta da verdade bíblica da justificação pela fé e o anúncio desta verdade iam de encontro aos interesses e à pregação de uma igreja que se pretendia depositária da graça salvadora de Deus. Por isso, “sem a igreja e fora dela não havia possibilidade de salvação”. Só havia um caminho para alcançá-la: ser católico apostólico romano e estar sob o poder absoluto e absolutista da igreja, sem questionamentos ou desvios.
A mensagem da Reforma implicava no reconhecimento de que a salvação é pela graça (de Deus), através da fé (do homem), e que esta fé é dom de Deus e não obra humana, para que ninguém, diante da graça salifica, se pense melhor que um outro ou superior a ele. A Reforma posicionava todas as pessoas em condições de igualdade diante da graça de Deus.
Assim, não há mais espaço para mediadores autoritários, mas para servidores dessa graça, comunicando-a aos homens como o serviço maior que lhes pode prestar.
Sob esta ótica, só há um absoluto, Deus, o Senhor da graça, da fé, da salvação e da própria igreja. Esta, como meio de comunicação dessa graça, ela mesma somente será aprovada enquanto seja fiel ao seu Senhor e útil para a salvação e a realização dos homens, por sua palavra e por sua vida – porque a palavra falada precisa ser também a palavra vivida.
A graça de Deus alcança a todos, é universal; a salvação é para todos, sem acepção de pessoas, e é universal a sua oferta. O meio de resposta do homem, a fé, é acessível a todos e, assim, também universal. A resposta humana à graça de Deus, por sua vez, não depende da sujeição a um credo formal, a poderes e instituições históricas, mas deve ser pessoal, consciente e autônoma. O poder de decidir se a aceita ou não está no homem, em cada indivíduo – esse o aspecto universal e democrático da salvação.
2). O segundo destaque: Os reformadores anunciaram a universalização do conhecimento, a democratização do saber. Do saber religioso, primeiro; do conhecimento em geral, como consequência. Essa era a implicação direta da mensagem em que preconizavam o acesso direto de todos os crentes e de todos os homens à leitura da Bíblia e à educação.
Se, diante dos postulados preconizados pela Reforma, nem mesmo as principais autoridades espirituais da Igreja teriam a prerrogativa de tirar do povo o direito de acesso ao conhecimento libertador das verdades cristãs exaradas na Bíblia, quem o teria e em que âmbito da vida?
Era o posicionamento, mais ou menos consciente dos reformadores, de que eles não haviam sido chamados para defender o Evangelho, mas para proclamá-lo em sua inteireza e em seu caráter libertados de todas as opressões, e para vivê-lo. De que a igreja, para tornar-se conscientemente fiel, precisa do conhecimento libertador das verdades evangélicas, de transparência emsuas práticas e de uma vida íntegra com a qual testemunhe o poder da mensagem que proclama.
Agora, com as facilidades criadas pela invenção da imprensa, com o ambiente cultural propício gerado pelo Renascimento, e com o apoio de alguns soberanos que se desprendiam dos grilhões de uma religião autoritária e obscurantista, os reformadores e seus seguidores podiam fazer a Bíblia chegar ao povo e, com isso, tornar universalmente acessível (consideradas as limitações da época) o conhecimento das suas verdades libertadoras.
Até então o conhecimento, como fonte de poder, em qualquer religião que se considere, fora sempre monopólio de uns poucos religiosos do alto escalão, todos eles sacerdotes e, por isso mesmo, comprometidos com o status-quo, com a tradição, com o passado.
3). O terceiro destaque: Urgia, pois, que outra verdade, sinérgica com essas duas já proclamadas, viesse juntar-se a elas para quebrar essa díade diabólica, de viés autoritário – o monopólio e a institucionalização da salvação, o monopólio e a institucionalização do conhecimento e do saber. E os reformadores anunciaram o sacerdócio universal dos crentes, cuja primeira implicação é a atomização e a democratização do poder na igreja.
Antes, o povo não existia como sujeito da sua salvação e da sua história, construída a partir da graça de Deus que lhe é estendida e da sua resposta consciente e autônoma a esta graça, pela fé. Agora, a realidade seria diferente.
A instituição eclesiástica que, como tal, só tem sentido para o seu existir se serva de Deus e dos homens, salvos ou não, é chamada a voltar ao seu verdadeiro lugar. O povo, e cada ser humano em particular, é colocado ante o desafio de assumir e realizar a sua autonomia, bem como de dar sentido à sua própria vida. E, se por decisão pessoal e consciente, assumir a fé cristã, é chamado também a construir a caminhada da sua igreja, num tipo de relação diferente, segundo a qual, a partir de agora, o poder não mais estará concentrado em uma pessoa ou na classe sacerdotal, mas atomizado, disperso, distribuído entre todos os cristãos, pois todos são igualmente sacerdotes.
Era um golpe certeiro e mortal, se levado às últimas conseqüências, no autoritarismo, sempre diabólico, que encontra os campos mais férteis para prosperar nos espaços religiosos onde predominem o emocionalismo, o culto a personalidades, os mistérios e operações somente acessíveis a alguns privilegiados, bem como no meio das “seitas” científicas esquecidas da finitude e limitação humanas, e nos espaços políticos de viés messiânico, assistencialista, populista e demagógico.
O sacerdócio universal dos crentes era a verdade bíblica a ser necessariamente realçada para que o verdadeiro sentido da liderança cristã, que segundo os ensinos do Novo Testamento se traduz em serviço para a salvação e para o crescimento e a realização do homem em Cristo, pudesse ser resgatada, reaprendida e posta em prática pelos cristãos.
Como justificar, agora, a concentração do poder na classe sacerdotal, se todos são sacerdotes? Qual a justificativa para que o clero, não importando como sejam chamados os seus sacerdotes oficiais, sejam mais importantes e mais poderosos que os não clérigos, os demais cristãos chamados de leigos (por definição, os que não sabem) – um horrível apelido arranjado para eles, com o intuito consciente ou não de confiná-los em seu próprio espaço, distante do espaço dos sacerdotes e sujeitos ao seu poder usurpador?
Sinérgica e cumulativamente, a força transformadora da mensagem da Reforma, com todas as suas implicações para a igreja e para a sociedade, vai-se mostrando em sua plenitude:
A justificação é pela fé, e a salvação é para todos, é universal e democraticamente oferecida.
A Bíblia, o conhecimento e o saber são para todos, e essa fonte milenar de poder (conhecimento, saber) deve ser acessível a todos, universal e democraticamente.
E se o sacerdócio também é universal, não há mais um lugar privilegiado para os que sabem e podem (o clero), em detrimento dos que não sabem e não podem (os leigos).
Mas como o poder não está apenas no cargo, na posição e no nome pomposo que o descreva, mas também em suas prerrogativas, em seus rituais, em seus procedimentos e nos conceitos verdadeiros ou equivocados que o sustentem, faltava algo a ser realçado para viabilizar mais um golpe fatal da Reforma no autoritarismo obscurantista da igreja medieval e, por implicação, em qualquer tipo de autoritarismo.
4). O quarto destaque: A última verdade que destaco está implícita nas três outras acima destacadas e delas se deriva, especialmente do sacerdócio universal dos crentes: os reformadores anunciaram, com isso, a universalização ou a democratização dos meios de produção do quefazer religioso.
Se todos os crentes são sacerdotes, a não ser que a instituição religiosa faça alguns mais sacerdotes que outros, tiram-se da classe sacerdotal as prerrogativas de ser detentora do conhecimento dos mistérios da religião e de ser a única instância da igreja capaz (e autorizada para tanto) de celebrar e realizar com exclusividade certas práticas e cerimônias mais significativas.
Agora, à luz deste novo conceito do sacerdócio cristão, de modo algum é dada ao clero a exclusividade para operar “mistérios” a que os demais crentes não tenham acesso. Ainda mais, para práticas sem qualquer respaldo bíblico, espetaculosas, fortemente impressionantes e mais facilmente utilizáveis com propósitos manipulatórios, de demarcação de espaços de poder e ligadas a ostensivos interesses econômicos e financeiros que, agindo em conjunto, resultam no fortalecimento do autoritarismo de lideranças anacrônicas e distantes do verdadeiro espírito cristão, conforme explicitado nos ensinos de Jesus.
Em tese, o sacerdócio universal dos crentes implica em que, se até o anúncio e o conhecimento da graça salvadora de Deus, sua bênção maior e renascedora dirigida a todos os homens, não é mediada por uma instituição ou por uma classe especial de crentes (o clero), mas tem como sacerdotes e mediadores todos os cristãos, o mesmo deve acontecer com as outras bênçãos e verdades que Deus tem para os homens em geral e para o seu povo.
É claro que isso não deve impedir decisões, práticas e programas inteligentes da igreja, conducentes à plena utilização dos dons com que o Espírito de Deus a provê, bem como à cabal realização dos ministérios nos quais os crentes, abençoados com esses dons, respondam à vontade de Deus e às necessidades dos seus irmãos de fé e dos homens em geral, e encontrem o espaço de serviço adequado à sua realização como novas criaturas, como renascidos em Cristo e como comunidade e fraternidade da fé.
Isso somente será possível se a igreja tiver todos os cuidados para não se trair em sua prática, caindo em armadilhas e desvios autoritários ou repetindo, com justificativas pretensamente baseadas nos ensinos de Cristo, os modelos de divisão do trabalho e de estruturas hierárquicas piramidais comuns às culturas e modelos econômicos das sociedades onde estão radicadas, todos distantes dos paradigmas estabelecidos nos evangelhos.
Essa possibilidade somente encontrará caminho para tornar-se real se a igreja, o povo renascido de Deus, assumir radicalmente o seu compromisso com Cristo e seus ensinos, construindo a sua unidade na diversidade, pois diversos são os dons e os ministérios, e o contrário disso seria o monolitismo e a uniformidade sem vida e autoritária da Igreja medieval. Também, livrando-se da carga de institucionalismo que o tempo e a irreflexão lhe foram impondo e sendo presente na sociedade como verdadeiros sal da terra e luz do mundo.
Diante do que acima dissemos, a Reforma é e será sempre uma obra inacabada. Será sempre um desafio, em qualquer tempo e em todos os lugares, nunca assumido por uma igreja sacerdotal, comprometida apenas com a tradição, com a letra fria, com estruturas, programas, métodos e processos marcados pelo autoritarismo, pelo corporativismo clerical e por privilégios, divisões e prerrogativas injustificáveis concedidas a alguns.
A Reforma, ontem ou hoje, é coisa para uma igreja profética, questionadora do “status-quo”, inconformada com este mundo, comprometida com a utopia possível (se assim não fosse, Jesus não a teria proposto) do Reino de Deus – o espaço humano e, por isso mesmo, espiritual, intelectual, emocional, físico, volitivo, individual, comunitário e social em que o senhorio de Cristo se realiza. Uma igreja que entenda que todo o poder e toda a honra são de Cristo, o nosso Senhor, e que os crentes, todos os crentes, sem distinções quaisquer, são igualmente filhos e igualmente servos do Deus altíssimo, chamados por ele para servir aos homens, a todos os homens, segundo a santa, libertadora e divina vontade.
A Reforma Protestante, em seus postulados mais centrais e fundamentais, de modo afinado com o conjunto dos ensinos neo-testamentários, é um libelo, um grito de indignação, um manifesto e um protesto sempre atuais contra todas as formas de autoritarismo e de degradação do ser humano.
É um compromisso radical com Cristo e com a liberdade de ser humano na dimensão da humanidade nele revelada. Um compromisso com a liberdade de rebelar-se contra o mal e toda manipulação da verdade e do homem, quaisquer que sejam suas fontes, formas, estruturas e mediações. Um compromisso com a coragem de ser livre e de assumir a nossa autonomia, dimensão essencial do ser cristão.