A Graça de Deus
(Sermão proferido pelo Prof. Arthur Anthony Boorne, no STBNB, 1968)
A graça de Deus é o elemento constitutivo do Evangelho cristão. Tirada a graça não haveria Evangelho nenhum – portanto, tudo que é característico da fé cristã é essencialmente relacionado com o conceito da graça de Deus.
Examinando o Novo Testamento deparamo-nos com um fato curioso. O meu Novo Testamento (Almeida: Edição Revista e Corrigida) tem 296 páginas, das quais os escritos do apóstolo Paulo ocupam 78. Paulo assim escreveu aproximadamente uma quarta parte do nosso Novo Testamento. Paulo escreveu 78 páginas e todos os demais escritores 218 páginas. Mas é interessante notar que o apóstolo emprega o vocábulo Karis 97 vezes enquanto todos os outros escritores usam-no apenas 45 vezes. Assim Paulo usa a palavra graça cinco vezes em cada quatro páginas enquanto os outros autores usam-na somente uma vez em cada cinco páginas. Portanto Paulo usa a palavra graça umas seis vezes por cada vez que aparece nos outros escritores do Novo Testamento.
Em alguns desses outros escritores a palavra não aparece nenhuma vez – por exemplo, nos Evangelhos de Mateus e Marcos. Em Lucas só aparece em trechos provenientes das fontes peculiares a este evangelho e em João só no Prólogo. Assim a palavra “graça”, no seu sentido teológico cristão, é praticamente desconhecida na tradição evangélica (usando esta palavra no seu sentido mais limitado). Como explicar o aparecimento da palavra nas epístolas do Novo Testamento quando ela é tão infrequente nos Evangelhos escritos depois da maioria das epístolas?
Supomos que a explicação seja a seguinte: que os Evangelhos, embora escritos depois da grande maioria das epístolas, foram compilados de fontes literárias originais em ambiente judaico e em época anterior ao aparecimento das epístolas, ou seja, antes do conceito da graça ter-se desenvolvido. O apóstolo Paulo, em virtude de sua experiência como fariseu convertido, e sensível à grandeza do Evangelho que levava aos gentios, é que começa a empregar o conceito “graça” como característico de sua mensagem.
Assim é que os Atos dos Apóstolos falam do Evangelho da graça de Deus mesmo quando Lucas quase não usa a frase no seu evangelho. Em escrever a segunda metade de Atos, Lucas dependeu de relatos dados pelo próprio apóstolo Paulo – e é exatamente nessa parte do livro onde aparece a palavra “graça” no sentido teológico.
As demais epístolas do Novo Testamento, escritas no ambiente das igrejas gentias criadas pela atividade e pregação do apóstolo Paulo naturalmente empregam o vocabulário usado normalmente em seu meio-ambiente. Assim em 24 páginas da minha Bíblia, isto é, nas epístolas não-paulinas do Novo Testamento, usa-se vocábulo Karis 21 vezes. Este cálculo deixa de lado as epístolas joaninas, pois João foge de usar a palavra “graça”, evidentemente dando preferência ao vocábulo “amor”.
Assim se destaca a influência extraordinária do apóstolo Paulo dentro do Novo Testamento – mesmo dentro dos livros dos quais não era ele o autor.
Assim torna-se necessário perguntar: Paulo, em conceituar o seu evangelho em dependência de um vocábulo alheio à tradição evangélica interpretou acertadamente o espírito de fé cristã?
Para responder a esta pergunta não vamos entrar em pormenores. É a nossa convicção que Paulo interpretou acertadamente o espírito de Jesus. Esta afirmação nossa merece justificação – porém acredito que no nosso meio tal justificação seja desnecessária. Contentemo-nos com uma citação que fala da graça evangélica embora o vocábulo não apareça: “Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos de vosso Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos… Sede pois vós perfeitos como é perfeito o vosso Pai que está nos céus”.
Jesus assim fala da generosidade de Deus aos homens que não merecemos essa generosidade e é exatamente essa generosidade que Paulo depois havia de chagar de “graça”.
A parábola do Filho Pródigo é uma ilustração de como Deus o Pai trata dos seus filhos – Ele os recebe por misericórdia sem nem querer acertar contas com eles. É esta a atitude divina que Paulo depois chamaria de “graça”.
Assim não é possível duvidar que Paulo interprete fielmente o ensino de Jesus e o significado de sua pessoa.
Havemos de perguntar a esta altura: em que consiste esta graça?
A graça é o amor imerecido.
É o amor que não se justifica pela natureza da coisa amada – é o amor que se justifica por sua própria natureza. A graça é o amor que insiste em amar mesmo quando teria toda razão em deixar de amar.
Não é o homem mais inteligente que mais aprecia a graça de Deus porque a graça não é premiada à inteligência. É aquele que mais lamenta a sua ignorância que entende da graça de Deus.
Não é o homem mais sábio que recebe a graça de Deus. Disse Jesus: “Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste às criancinhas…”
Não é o homem aparentemente mais decente que goza mais da graça de Deus pois a graça de Deus sabe que o vagabundo é detestável mas Deus aborrece o homem cuja decência é a dum sepulcro branquejado.
Não é o homem rico que pode esperar também enriquecer-se da graça de Deus pois a graça mal condiz com a riqueza econômica.
Não é o homem branco que receberá o aplauso de Deus por ser branco – pois a graça de Deus visa o coração e não a casca.
Não é o homem religioso que, por observar algum regulamento eclesiástico, vai merecer a graça de Deus, pois não é por dizer “Senhor, Senhor” que Ele nos recebe.
Assim pode o apóstolo orgulhar-se, perversamente aos olhos do mundo, porque “Deus escolheu as coisas loucas deste mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas deste mundo para confundir as fortes. E Deus escolheu as coisas vis deste mundo, e as desprezíveis, e as que não são, para aniquilar as que são…”
Eis a graça!
Já dissemos em outras palavras que o Evangelho cristão é pura graça.
Queremos raciocinar para ilustrar esta afirmação. Tudo que é característico da fé cristã é essencialmente relacionado com conceito da graça de Deus.
Para exemplificar a nossa afirmação assim afirmamos: o Juízo é e será o juízo da graça. Somos e seremos condenados porque a graça nos é alheia. Desconhecemo-la.
Que é que nos esmaga em Deus?
Que é que nos apavora em Deus?
Que é que nos faz recuar de Deus?
Será o poder d´Ele que nos esmaga?
Não, porque o Deus cristão não tem poder além do da sua graça. O conceito do poder esmagador do Deus irresistível é pagão, não cristão. Deus não é poder – Deus é amor. Se é que Deus é poderoso, é pelo poder do amor. Como disse Jesus: “Eu, se eu for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim”.
Será o pavor numinoso d´Ele que nos esmaga?
Não! Pavor é basicamente medo perante o desconhecido. Mas para nós, cristãos, Deus se nos revelou em Cristo. Deus é-nos conhecido. “Quem vê a mim vê o Pai” . O pavor perante Deus é de caráter supersticioso que o verdadeiro conhecimento de Deus afugenta. “O verdadeiro amor lança fora o temor”
Será a ameaça duma predestinação inescrutável e imutável que nos esmaga?
Não! O Deus que é nosso Pai por Jesus Cristo veio não nos fazer apercebidos de laços eternos inquebrantáveis que nos prenderiam inexoravelmente. Antes veio para nos assegurar a nossa liberdade: “O Espírito do Senhor é sobre mim, pois… enviou para apregoar liberdade aos cativos”.
Que é, então, que nos esmaga, que é que nos julga e condena em Deus? Que é que n´Ele me acusa?
Que é que n´Ele me faz tremer?
É A GRAÇA D´ELE.
A Graça!
É possível que é a graça que me condena?
A graça condena-me pois ela me é estranha.
A minha vida não respira a atmosfera da graça.
Não gosto da graça por ela não me favorecer.
Não aprecio a graça por perante ela ser indigno.
Não me folgo com a graça pois eu não sou gracioso – só perdôo quando me convém, só amo quando me agrada, só sirvo quando do meu serviço me advém alguma vantagem. Sou egocêntrico e, portanto, inimigo da graça.
Sim, é a graça de Deus que me condena –
pois que como homem quero fazer-me de bom e de grande e de
sábio
mas a graça de Deus humilha-me,
a graça é que me condena.
Mas a Bíblia não fala da ira divina?
Fala, sim, mas a ira é apenas uma outra palavra para descrever a graça de Deus. Se Deus se irasse comigo eu responderia! Se Deus brigasse comigo eu brigaria com Ele! Se Deus se aborrecesse comigo eu me aborreceria com Ele!
Mas Deus não se ira assim.
Deus não briga como eu gostaria que Ele brigasse.
Deus não se aborrece!
Deus não se ira, não briga, não se aborrece?
Não! … Deus MORRE!
Perante essa graça eu não tenho defesa.
Posso arremessar contra aquela Figura tudo que eu tenho: cravos, coroa de espinhos, açoites…
Mas não consigo apagar a graça…
O pior que eu me faço o mais é que a graça se destaca.
Ó Deus! me aceita, responde-me na mesma moeda!
Para que possa queixar-me de Ti!
Mas é exatamente isso que a graça não faz…
Ela fica lá pendurada, silenciosa,
o sangue gotejando, pintando de vermelho a suja terra.
Aquele Deus não se ira,
aquele Deus não se aborrece,
não há ira; só graça!
a graça que eu não entendo,
a graça que me condena!
Deus seja louvado pela graça que me condena!
Bendito seja Deus cuja graça sobrevive ao meu mal,
e ainda me ama, e que, por me condenar, me salva.
Crescei na graça e no conhecimento do nosso Senhor e Salvador. A Ele seja dada a glória, assim agora, como no dia da eternidade.
A GRAÇA DE DEUS
Dedicado a Anthony Artur Borne
A graça que é derramada sobre o mundo,
Que sustenta a vida de modo profundo,
É a graça revelada em Jesus Cristo.
Ela é o que prego pela qual eu existo.
É graça que salva e que também condena
Por ser graça infinita e que vale a pena.
Salva por libertar-nos da escravidão do mal,
Condena nosso egoísmo e o ato imoral.
Ninguém é bom demais que a mereça,
Ninguém é mal demais que ela esqueça.
É pura graça de Deus que jorra da cruz.
Ah, que sejamos todos bem graciosos,
Passando adiante em gestos grandiosos,
O que foi dado graciosamente por Jesus.
Brasília, 09.10.2013, às 18 horas,
No Calçadão da Asa Norte.
Pastor Julio Borges Filho