MEMÓRIA MUSICAL DE RESISTÊNCIA À DITADURA
MEMÓRIA MUSICAL DE RESISTÊNCIA À DITADURA
Julio Borges Filho
Quem viveu nos anos de chumbo no Brasil no século passado tem uma memória musical que não pode ser esquecida, especialmente nos 60 anos do golpe de 1964 e agora quando houve uma tentativa clara de golpe militar sob uma liderança fascista. Por isso quero registrar as músicas populares de protesto que mais se destacaram na época. Vou resumir apenas a uma estrofe para não ficar muito longo o texto.
CÁLICE, de Chico Buarque, cantada por Gilberto Gil e Chico ainda bem jovens, é uma obra prima censurada pela ditatura. Quando eu a ouvi fui tocado na alma lembrando-me da agonia de Jesus no Getsêmane com sua súplica: “Pai, afasta de mim este cálice…” Parece que naquele momento o Senhor assumiu todas as dores do mundo, inclusive dos censurados, presos, torturados e mortos. A letra tem sentido duplo: Cálice ou cale-se.
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga?
Tragar a dor, engolir a labuta?
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
MENINO, de Milton Nascimento e Ronaldo Bastos, em memória do estudante Edson Luiz no dia 28.03.1968 no Rio de Janeiro, que provocou uma comoção estudantil levando seu cadáver para a Assembleia Legislativa do Estado da Guanabara. Vejam que letra cantada por Milton Nascimento. Sempre achei bonita a música, mas não sabia a sua origem e força.
Quem cala sobre teu corpo
Consente na tua morte
Talhada a ferro e fogo
Nas profundezas do corte
Que a bala riscou no peito
Quem cala morre contigo
Mais morto que estás agora
Relógio no chão da praça
Batendo, avisando a hora
Que a raiva traçou no tempo
No incêndio repetindo
O brilho do teu cabelo
Quem grita vive contigo
Quem grita vive contigo
TERRA, de Caetano Veloso, cantada pelo próprio Caetano, e feita numa cela de prisão diante das fotos da terra tirado pelos astronautas americanos na ida à lua. Esta música perfeita é pura planetania (amor pelo planeta, nossa casa comum), Terra criada por Deus para que todos vivamos em paz.
Quando eu me encontrava preso
Na cela de uma cadeia
Foi que eu vi pela primeira vez
As tais fotografias
Em que apareces inteira
Porém lá não estavas nua
E sim, coberta de nuvens
Terra, terra!
Por mais distante
O errante navegante
Quem jamais te esqueceria
O BÊBADO E O EQUILIBRISTA, de Aldir Blanc e João Bosco, e interpretada por Elis Regina. A música é uma homenagem a Charles Chaplin, mas tornou-se um hino contra a ditadura e um manifesto a favor da anistia das vítimas do regime militar no Brasil. A letra é perfeita e perfeita a intepretação da imortal Elis.
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos
A lua, tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco
Louco
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora
A nossa Pátria mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil
PARA NÃO DIZER QUE NÃO LHE FALEI DE FLORRES, de Geraldo Vandré e cantada por ele mesmo num famoso festival e que virou um hino contra a ditadura.
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Somos todos iguais
Braços dados ou não
Nas escolas, nas ruas
Campos, construções
Caminhando e cantando
E seguindo a canção
Vem, vamos embora
Que esperar não é saber
Quem sabe faz a hora
Não espera acontecer
Há soldados armados
Amados ou não
Quase todos perdidos
De armas na mão
Nos quartéis lhes ensinam
Uma antiga lição
De morrer pela pátria
E viver sem razão
DISPARADA, de Geraldo Vandré e interpretada pelo inesquecível e simpático Jair Rodrigues. Ritmo nordestino trazendo verdades humanas profundas desprezadas pela ditadura militar.
Prepare o seu coração
Pras coisas que eu vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
E a morte, o destino, tudo
Estava fora do lugar
E eu vivo pra consertar
Na boiada já fui boi, mas um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo vaqueiro morreu
Boiadeiro muito tempo
Laço firme, braço forte
Muito gado e muita gente
Pela vida segurei
Seguia como num sonho
Que boiadeiro, era um rei
Mas o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei
Então não pude seguir
Valente lugar-tenente
De dono de gado e gente
Porque gado a gente marca
Tange, ferra, engorda e mata
Mas com gente é diferente
APESAR DE VOCÊ, de Chico Buarque cantada por ele mesmo, virou um hino pelo fim da ditadura.
Amanhã vai ser outro dia
Amanhã vai ser outro dia
Amanhã vai ser outro dia
Hoje você é quem manda
Falou, tá falado
Não tem discussão, não
A minha gente hoje anda
Falando de lado
E olhando pro chão, viu
Você que inventou esse estado
E inventou de inventar
Toda a escuridão
Você que inventou o pecado
Esqueceu-se de inventar
O perdão
Sempre achei que os artistas são a vanguarda da sociedade e do mundo Recomendo que você veja as letras das músicas e ouça nas vozes do cantores citados acima. Tudo para conservar a memória de um tempo sombrio que não queremos que não volte jamais. DITADURA NUNCA MAIS!…
Brasília, 1º de abril de 2024