O VERBO JULIOBORGIZAR
O VERBO JULIOBORGIZAR
Por José Rogério Pereira Flor
Qual aluno não levará na memória aquele estereótipo paterno, agradável e coroado com aqueles clãs que lhe dá um tom meio rabínico. Ali, sempre assentado atrás daquele mesinha de professor, que se tornou uma espécie de santuário, de onde ele emite sua sabedoria, suas ideias revolucionárias e desafiadoras aos olhos atentos de seus discípulos. Por certo jamais será apagada aquela figura de voz mansa, compassada e vibrante que, num emaranhado de metáforas, hipérboles e trocadilhos, consegue ser simultaneamente rebuscado e cognoscível, culto e popular (nunca populista).
Aliás esta singularidade emerge uma questão. Como um professor que raramente lança mão de recursos visuais, que se mantém quase estático em sua cadeira, pode tornar a sua aula tão alegre, contagiante e atrativa? A resposta pode estar na expressão que este aluno encontrou para distinguir Julio Borges: “ele reúne em si o peso de um erudito e a leveza de um contador de história”. Melhormente dizendo, Julio Borges é um contador de “causos”, assim mesmo com “u” para denotar a semelhança com o enredo dos contos interioranos com os quais ele obtém o mesmo efeito áudio visual das parábolas de Jesus.
Desta forma, entre uma explanação e outra esse professor refrigera as mentes de seus alunos com suas histórias irreverentes que culminam com a explosão da turma e com a elucidação da verdade ilustrada. Sua informalidade, contato afetivo e seus contos banhados de experiências não só formam teólogos do Antigo Testamento, mas, sobretudo, libertam seus ouvintes dos vícios religiosos e curam as mentes fanáticas e doentias.
Foram tantas as frases de efeito e histórias citadas pelo mestre durante suas prédicas, que seria injusto omitir, neste contexto, uma diminuta e aleatória amostra daquelas que ficaram arraigadas na memória:
- “O oprimido quando assume o poder geralmente se torna opressor (citando Josué de Castro).
- “Só há opressor enquanto houver oprimido… diante da opressão só a subversão” (estimulando a participação humana no processo libertário).
- “A política evangélica geralmente é semelhante à secular, tendo apenas uma diferença: suas mazelas são feitas em nome de Deus”.
- “Um bom sermão deve coçar onde o povo está coçando”.
- “Às vezes um churrasco vale por dez cultos” (referindo-se à solidão das pessoas no culto por falta de comunhão e interação).
- “A paz do Senhor, pastor! Qual é o seu signo?” (aludindo aos crentes da Bahia após o culto, explicando que a religião popular difere da clerical).
- “O Deus que me criou sem eu querer não me salvará se eu não quiser” (citando Agostinho para combater o calvinismo extremado).
- “O pagão orando no templo do ídolo, orou ao Deus verdadeiro; e o cristão orando no templo do Deus verdadeiro, orou ao ídolo” (fazendo citação da famosa parábola de Kierkegaard na qual a sinceridade e o fervor pagão excedeu o do cristão).
- “O mal do capitalismo é o acúmulo egoísta de bens”.
- “A Bíblia está cheio de cabra safado que Deus utilizou” (citando o teólogo Robinson Cavalcanti para combater o legalismo e destacar a fragilidade humana).
- “Fui assistir à palestra de Leonardo Boff, não consegui entrar, desisti e fui a um barzinho mais próximo comer uma codorna frita” (com o intento de atenuar o apartaid dos fariseus modernos).
- Ao apontar somente os aspectos positivos dos alunos durante uma avaliação, Julio Borges diz ter aprendido isso com uma senhora devota que só salientava as qualidades das pessoas. Diz ele que certo dia morreu, na cidade desta senhora, um homem chamado Antônio. E ninguém podia atribuir, no velório, qualquer elogio a ele por se tratar de um ébrio da cidade. Então a senhora, que também se chamava Antonia, entrou e todos ficaram em suspense para ver o que ela dizia sobre o defunto. Ela alisou os cabelos do morto, olhou pra cima com ar de saudade, e disse: “Ninguém assobiava como o Antônio!…”
Outro símbolo julioborgiano é a sua risada larga e contagiante que, além de abrilhantar seus comentários, é dotada de inegável poder terapêutico, capaz de devolver o ânimo a quaisquer deprimidos. Sempre dizia aos meus colegas que a risada expansiva de Julio Borges já valia sua aula. Essa alma distinta não é outra, se não a mesma dos poetas que são apaixonados pela existência de Deus, da humanidade e da natureza. De modo que se um dia a Faculdade Teológica Batista de Brasília desejar homenagear este insigne professor, que não o faça de forma costumeira com uma inscrição numa placa ou dando o nome de uma sala nobre. Antes plante uma árvore no pátio verdejante e conceda-lhe o nome “científico” de JULLIUS BORGISS, pois coadunará muito mais com seu espírito poético.
Por conta desta composição holística, teólogo-erudito-contador de história-poeta, não há como medir a contribuição da teologia julioborjana na vida desses formandos. Faltaria espaço para discorrer sobre seu estímulo ao pensar teológico, sua ênfase na leitura sociológica da Bíblia, sua defesa dos fracos, a responsabilidade social da igreja, a apreciação pelo belo fora do perímetro judaico-cristão, e seus desafio perene à criação de novas teologias que libertem os pobres e excluídos e respondam outras questões que fervilham na sociedade. No campo da fé, infere-se do estilo e dos ensinos de Julio Borges (com os quais comungam as reflexões teológicas deste signatário) que a verdadeira religiosidade não se firmam no exibicionismo monástico, no legalismo farisaico, no neognosticismo ascético, na beatice orgulhosa ou nos excessos pneumáticos. Pois toda ética cristã se resume no amor que é altruísta, empático, sensato, flexível, misericordioso e ágil para atende os abatidos e oprimidos ( 1 Co 13; Rm 13:9 e 1 Jo 317).
Portanto, aqueles que escolhem Deus do tamanho do seu conhecimento e o aprisionam em sua religião ou denominação, que coam mosquito e engolem camelo, que colocam regras acima do amor ao ser humano, que se tornam intolerantes, escandalizam por qualquer futilidade, que se envaidecem pela sua espiritualidade excludente e separatista e que vivem a teologia do pânico pelas culpas, são convidados a conjugar o verbo JULIOBORGIZAR.
Eu julioborgizo, tu julioborgizas?
Brasília, novembro de 2003