QUANDO O LUGAR É ESTREITO…
Sermão: QUANDO O LUGAR É ESTREITO… – Êxodo 14:9-15
(Nos 30 anos da Igreja Cristã de Brasília)
Pastor Julio Borges Filho
Nossa igreja nasceu do sonho de Jesus no coração (João 17): O sonho do Reino de Deus, o sonho de liberdade e da libertação humana. A liberdade é o maior bem dado ao ser humano. Qualquer ameaça a ela é maligna.
A luta pela liberdade e libertação é a mesma hoje como no passado. A libertação do povo hebreu da opressão egípcia é essencial para se entender isso. O povo, sob a liderança de Moisés, enfim, sai do Egito não pelo caminho fácil e curto, mas por um caminho difícil e longo. O livro do Êxodo relata isso como orientação de Deus… É bom que se diga que o Egito foi bom na época de José, mas mudou a conjuntura política, e tornou-se terra de opressão para os hebreus. Quando Jesus nasceu a Palestina, terra da liberdade, era terra de opressão, e o menino Jesus com seus pais fugiram para o Egito, agora terra da liberdade. Tudo muda de acordo com a conjuntura.
O acampamento do povo junto ao Mar Vermelho/Mar dos Juncos é a chave para todas as libertações. O lugar é desafiador e estreito: atrás vem Faraó e seu exército para levar o povo de volta e à frente o mar Vermelho. Angústia e clamor do povo… O ensino chassídico diz que houve quatro acampamento: 1) o dos que queriam voltar para a escravidão, 2) o dos queriam lutar contra o exército de Faraó, 3) o dos desesperados que queriam se jogar ao mar, e, finalmente, o 4) o dos que oravam. A resposta de Moisés ao povo se dirige aos quatro acampamentos: 1) para os desesperados, “Não temais. Aquietai-vos e vede…”; 2) para os que queriam voltar, “os egípcios que agora vedes, nunca mais os vereis”; 3) para os que queriam lutar, “O Senhor pelejará por vós”; e 4) para o da oração, “e vós vos calareis”. A resposta de Deus ao clamor do povo é revolucionária: “Por que clamas a mim, Moisés? Dize ao povo de Israel que marchem”. E o mar se abriu para o povo e se fechou para as tropas da opressão. O Midrasc, a interpretação alegórica do judaísmo, diz que tudo começou com um homem que não sabia nadar, Naschson bem Aminadav, que creu nas palavras de Moisés e entrou no mar, e só quando a água chegou ao seu nariz o mar se abriu para o povo todo passar. Lição: Quando o lugar se torna estreito, a ordem divina é a transgressão subversiva e libertadora em busca por espaços de liberdade.
O caminho para a liberdade continua o mesmo no mundo e nas igrejas de hoje porque, no fundo, “sempre fomes livres nas profundezas de nosso coração. Totalmente livres, homens e mulheres. Fomos escravos no externo, mas homens e mulheres livres em nossa alma e espírito”, como afirmou Macharel de Praga.
Marchar rumo ao futuro e jamais retornar à opressão
Somos peregrinos sempre inconformados, mas em marcha. Retornar à opressão, jamais. É caminhando para frente que tudo se abre e o futuro e a liberdade sorriem..
Bem-aventurança em hebraico significa ir para frente. Felizes são os que caminham bem – Salmo 1.
Contras as incertezas, a certeza do caminho
No deserto da vida há pedras, obstáculos, fome, sede, necessidades, crise de fé, mas Deus caminha conosco mostrando que o deserto é fértil e pode produzir direção, alimento, água, desafios e esperança..
A certeza do caminho é a terra que mana leite e mel, a pátria da liberdade. E isso provoca em nós santo inconformismo.
Transgredir como caminho para a libertação
Exemplos: Abraão, o transgressor da cultura: “Sai (trai) da tua terra e da tua parentela…; Jacó, o transgressor da família; roubou a primogenitura do irmão e a bênção paterna, foge, tem uma visão celestial, é enganado pelo sogro e o serve por 14 anos, foge de novo com as duas esposas e rico, e teve uma luta heroica com Deus no vau do Jaboque e foi transformado de enganador e caloteiro, em príncipe recebendo o nome de Israel e, depois, reconcilia-se bem do seu irmão Esaú; Moisés, traidor de um império onde ele teria um futuro, mas, atendendo o chamado de Deus, tornou-se o libertador e o legislador do povo de Israel. Davi, o transgressor de um reinado: em sua fuga da ira de Saul, abrigou-se na caverna de Adulão – I Sm 22:1-2, vindo a ele sua família e endividados e amargurados, e com esse marginalizados formou um exército de resistência de 400 homens; O profetas de Israel foram transgressores do status quo social, político, religioso e econômico;4) Jesus, o amigo dos transgressores e transgressor de sua época de segregação social, política, econômica e religiosa – Lc. 14:25-27 narra seu desafio de libertação a partir da família. Ele nos provou que há mais humanidade e futuro nos publicanos e pecadores do que nos orgulhosos escribas e fariseus. Paulo traiu o judaísmo pela verdade do Evangelho de Cristo e escreveu aos gálatas palavras belíssimas: “Foi para a liberdade que Cristo vos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos submetais de novo ao jugo da opressão” – Gl 5:1. Aqui no Brasil, na luta contra a opressão, negros fugiam e se organizavam quilombos, lugar de resistência e liberdade.´
Lí no facebook uma provocação inteligentes na página de João Pedro Araujo, meu ex-aluno e hoje pastor da IB do Lago Sul:
“Quando William Booth, fundador do Exército de Salvação, queria tirar os famintos e sem-tetos da rua, sua igreja foi contra;
Quando George Whitefield queria pregar para os mineiros de Kingswood na entrada das minas, sua igreja foi contra;
Quando William Wilberforce lutava contra o tráfico de escravos, sua igreja foi contra;
Quando William Carey Taylor queria sair para pregar o evangelho fora de suas terras, sua igreja foi contra;
Quando Robert Raikes queria trazer esperança para as crianças londrinas ensinando-lhes a ler e escrever usando os domingos, sua igreja foi contra;
Quando Martin Luther King Jr lutava contra a discriminação racial na Geórgia e nos Estados Unidos, sua igreja foi contra;
Quando Dietrich Bonhoeffer lutava contra os desmandos de Hitler, sua igreja foi contra:
Quando o pastor Peter pregava contra a exploração dos escravos no Caribe por seus irmãos brancos, sua igreja o expulsou e o proibiu de pregar.
Ser protestante é ser a favor do quê ou de quem?
Orivaldo Pimentel Jr, teólogo e sociólogo professor da UFRN, escreveu um belo artigo diagnosticando os evangélicos no Brasil intitulado “Seguidores x discípulos” e inspirado na grande comissão de Jesus registrada por Mateus. Diz ele que o grande problema das igrejas hoje é que a maioria são apenas seguidores de Jesus e não discípulos autênticos. O seguidor segue sem refletir e torna-se fácil em massa de manobra e são manipulados, enquanto o discípulo quer aprender, entender e imitar Jesus. O missionário no Senegal, Flávio Herder, mandou-me um postal de Madrid onde estava fazendo um curso pedindo minhas orações pela Espanha porque, segundo ele, lá só havia 1% de evangélicos. Confesso que ainda não orei achando que, a julgar pelos evangélicos Brasil, a Espanha está muito bem.
A ICB: espaço de transgressores
Meu sonho, desde o seminário foi ser pastor de uma igreja diferente e, após pastorear quatro igrejas batistas tradicionais, fiquei cansado de ser gerente de berçário, Os progressos eram poucos porque o sistema denominacional escraviza as igrejas. Coloquei no poema “Meu sonho” isso: “Sonho com a igreja futuro/como seu caminho inseguro/ no coração do Brasil. Sonho com uma igreja sem muro com seu caminho inseguro/ no meu céu de anil.” Assim deixei o pastorado da Terceira Igreja Batista do Plano Piloto, e com 30 membros organizamos no auditório da Bíblia na 603 Norte a Igreja Cristã de Brasília. Depois se agregaram gente de outras igrejas (batistas, presbiterianas, nova vida, assembleias de Deus, etc). A igreja cresceu rápido nos cinco primeiro anos, creio que por ser uma novidade, desenvolvendo um excelente trabalho social sob a liderança de Serguem Machado e Alzemira Araujo na Estrutural onde ajudamos a organizar a Associação de Moradores,. Com o pastorado de Noé Stanley houve grande movimento de jovens e desenvolvimento cultural. Depois a igreja viveu um momento de intelectuais que produziu muito em reflexão publicando duas revistas: Teologia e cultura e Ethos. Mas a igreja se esvaziou neste período por causa do intelectualismo e horizontalismo, e tive de reassumir o pastorado para manter aceso o sonho inicial.
Em nossa história passaram um misto de pessoas piedosas, revoltadas, inconformadas, intelectuais, jovens, gays, homens e mulheres. Muitos continuam assim, mas outros resolveram retornar ao Egito.
O resto hoje, sob o pastorado do Pastor José Carlos e liderança de Wilson Dias, é um pequeno e simpático grupo de líderes, alguns com traumas de igrejas passadas, mas com um potencial imenso. Querem ser discípulos. O que falta é um desejo maior de estar juntos e aceitar os desafios urbanos que estão diante de nós… Todavia foi organizada uma associação que faz um trabalho social de envergadura na Invasão Porto rico em Santa Maria.
30 anos se passaram; já era para a ICB não mais existir, mas continua com um espaço grande de liberdade e de inclusão.
Continuamos dizendo não a toda forma de dominação clerical, religiosa, política e econômica. Uma senhora pobre um dia foi se aconselhar comigo. Levantou a sua calça comprida até o joelho e me mostrou a perna cheia de varizes. E me disse que o seu pastor a proibiu de ir à igreja de calça comprida porque é roupa de homem. O que fazer diante da proibição pastoral e da vergonha de exibir suas varizes usando saia? Eu lhe: “Minha irmã, esse seu pastor não é um bom pastor. Ou é um ignorante ou simplesmente que mandar em você. Se ele insistir, mude de igreja.” Ela fez isso, e sua rebeldia foi recompensada.
Por isso, mesmo poucos, ouçamos as palavras de Sumo Pastor: “Não demais, ó pequenino rebanho, porque aprouve ao Pai dar-vos o seu Reino” – Lc. 12:32.