UM DISCURSO DENUNCIADOR INDIGNADO
UM DISCURSO DENUNCIADOR INDIGNADO
Mt 23
Marcos Monteiro*
“Jerusalém, Jerusalém! Que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e vós não o quisestes!”
Mt 21,9a.
Sentando no templo de Jerusalém, Jesus pronuncia um indignado discurso, verdadeiro libelo contra os fariseus e escribas, autoridades políticas e religiosas, das mais respeitadas entre o povo. O discurso é feito na presença dos mesmos, em estilo profético, a partir de uma sucessão de “ais”
Somente para comparar, os “ais” de Isaías, capítulo seis, são na terceira pessoa, aqui a confrontação é direita, verdadeira denúncia não contra um fariseu em particular, mas contra todo o grupo e todo o sistema farisaico.
O discurso é continuidade dos atos proféticos simbólicos. Ocupado o templo, símbolo de espaço e tempo sagrado (o mais sagrado dos espaços e dos tempos – a palavra “templo” vem da mesma raiz de “tempo”), instaurada a misericórdia como característica sagrada, na cura de cegos e coxos, o profeta Jesus de Nazaré começa o julgamento dos líderes nacionais com um forte pronunciamento de acusação.
A acusação parece fundamentalmente religiosa e toca no ponto mais sensível da teologia vigente: a idolatria. Essa atitude tem conseqüências econômicas e políticas, reforça a exploração tributária e legitima a violência estrutural, onde pobres, como as viúvas, e cidadãos livres, como os profetas, são sempre as vítimas principais.
O sequestro dos símbolos sagrados
Mt 23, 1-12
Os escribas e fariseus sentaram-se a força na cadeira de Moisés, amam a adoração popular e gostam de serem considerados mestres, pais ou guias. Para Jesus, isso é atitude de usurpação do reservado e reivindicado por Deus, seqüestro de símbolos sagrados, o que é idolatria.
São perfeitos no discurso, mas lamentáveis na prática, cultivam a própria imagem de modo ególatra, estabelecendo uma cultura de privilégios que desfaz a fraternidade e igualdade de todos.
Jesus tem uma compreensão radical do sistema de titulação e de atribuição de méritos: ele não sintoniza com a idéia da igualdade de irmãos no Reino de Deus. Entre irmãos não há mestres, pais ou guias. Atitudes individualistas, elitistas e paternalistas não constroem comunidade, mas causam cisões estruturais permanentes nos grupos.
Querer ser chamado de mestre é egolatria e chamar outro de pai é idolatria. Ter um só Deus e um só Cristo é cultivar relações de mutualidade, vivendo-se em comunidade e deixando-se guiar como uma criança apenas pelo Cristo.
A sacralização da exploração econômica
Mt 23,13-24
O conjunto de textos começa com surpreendentes e gravíssimas asseverações sobre a religiosidade dos fariseus. Os fariseus e os seus escribas, por mais que estudem, não entendem do Reino de Deus, do modo de Deus agir, e ainda querem proibir os outros de entenderem.
Ainda mais, têm a mania de desrespeitar a religiosidade de outros povos, “rodeiam o mar para fazer um prosélito”, sem perceber que o problema é a sua própria religiosidade. Dizendo com outras palavras, Jesus afirma que a religião dos fariseus é duas vezes pior do que a religião dos pagãos.
Essa religiosidade danosa se desenvolve através de motivações econômicas suspeitas, devora a casa das viúvas, e de uma absoluta inversão de valores: a oferta do altar e o ouro do santuário seriam mais sagrados do que o altar e o santuário – o que é um contra-senso.
Uma religiosidade que defende a tributação minuciosa, da hortelã, do endro e do cominho, que prejudica apenas o pequeno camponês, sem o igual cuidado com os fundamentos de qualquer tributação: a justiça e a misericórdia.
Além da violência simbólica
Mt 23,25-36
Através das metáforas sobre “fora” e “dentro”, “exterior” e “interior”, Jesus ataca o sistema de “pureza” e “impureza” que norteia a maioria das ações de toda a sociedade. Pureza e impureza são noções interiores e não exteriores. Os fariseus não tentam mudar a raiz das coisas, mas apenas a folhagem, o que não produz nenhuma mudança real.
A acusação é de violência, que não fica apenas na região dos símbolos, mas redunda em práticas assassinas. Por mais que se adornem túmulos e se caiem sepulcros, a morte estará presente no interior da estrutura, e a violência aparecerá, apesar das declarações de inocência.
A indignação vai ao paroxismo, os fariseus são chamados de cobras e filhos de cobras venenosas. A família é reprodutora da violência e os filhos dos assassinos vão continuar sendo assassinos de profetas. O preconceito, a discriminação, a religião do elitismo e do poder político e econômico, são aprendidos dentro de casa.
O veredito final
Mt 23,37-39
O final do discurso é de uma beleza pungente. Há uma repentina quebra de tonalidade, depois da explosão irada. Lamento doloso de fêmea que deseja proteger filhotes que não querem ser protegidos. A indignação irada é o outro lado da misericórdia frustrada.
Talvez, toda crítica deva vir sempre de uma atitude de misericórdia, mesmo que a forma seja irada. Atos de amor nem sempre são doces. As atitudes e seus objetivos não podem ser medidos pela veemência das palavras, pelas explosões de ira, ou pela contundência da crítica.
O texto passa da ira à ternura, mas está todo envolto em intensidade e paixão. Talvez a vida não deva exigir de nós menos do que isso: essa mistura de crítica contundente e de ternura apaixonada.
Feira de Santana, 3 de dezembro de 2008
*Marcos Monteiro é um dos pastores da Comunidade de Jesus em Feira de Santana, BA e faz parte do colégio pastoral da Primeira Igreja Batista em Bultrins, Olinda, PE. Mestre em Filosofia, é assessor de pesquisa do CEPESC, vice-presidente do Centro de Ética Social Martin Luther King e coordenador do Portal da Vida.
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