Luz Silenciosa
Reflexão sobre o filme de Carlos Rayalas
Julio Borges Filho
Fiquei profundamente impressionado com a beleza artística e pelo conteúdo humano do filme Luz silenciosa. Uma beleza que não precisa de música, mas há poesia e música em tudo. Só que silenciosa. Há música no amanhecer e no anoitecer, no cântico dos galos, no croaxá dos sapos, no barulho das águas, no silêncio das orações, nos amores dos amantes, no choro de culpa e de angústia, na morte, na dor e na fé.
Impressionou-me o início e o fim do filme: o raiar do dia e o pôr-do-sol. Assim é a vida: nasce esperançosa e morre. Mas até na morte há beleza, talvez a beleza da ressurreição. O quadro da família orando silenciosamente à refeição, o banho das crianças nas águas cristalinas, os conselhos do amoroso pai-pastor, o abraço dos amantes Juhan e Meirione, a relação sexual deles e, sobretudo, a dor de Esther, a esposa, e a impotência e o desânimo do esposo infiel com a mulher morta nos braços. Mas o quadro mais sublime é o encontro de Meirione com Esther quando esta está morta. O beijo de Meirione na boca dela é o beijo do amor que renuncia a favor da vida, fruto de uma fé profunda, e a ressurreição de Esther é a oportunidade do esposo acertar-se com ela e ela com ele. Coisas de Deus. Outro quadro belíssimo é quando Anita, a filhinha, chama insistentemente o pai para ver a mãe: “Venha papai, mamãe acordou e te chama”. E a irmã adolescente repreendendo a irmãzinha: “não incomoda o papai”. A simplicidade e a pureza de Anita só são encontradas nas crianças.
O filme me impactou pela reflexão proposta: natureza, fé, comunidade religiosa, família e relacionamento conjugal. O amor arrebatador com o qual todos sonham, a irresistível atração entre um homem e uma mulher, e o avassalador sentimento de culpa dos amantes. O confronto entre o amor-eros, apaixonado, com valores tradicionais como fidelidade conjugal, filhos, comunidade de fé. O sentimento abafado, contido, as lágrimas não derramadas no tempo certo, tudo isso, um dia vai extravasar abundantemente. Tudo que é reprimido um dia aparecerá com força. É a lei da vida. Parece que há momentos tão sublimes que surgem na vida para chacoalhar tudo saindo de uma rotina monótica e fria onde os desafios não existem e onde a vida perde o sentido. A vida de Juhan é assim: tudo é previsível e organizado.
Fui sozinho ao cinema e saí cheio coisas pessoais para serem resolvidos, e pensando: como seria bom se a vida fosse simples. Viver não é fácil, é complicado. Acho que o segredo de tudo é sermos nós mesmos sem medo de ser feliz. Acho que o juízo de Deus sobre nós será exatamente este: fomos ou não fomos nós mesmos? Ser aquém do fomos chamados a ser é a essência do pecado. É errar o alvo da vida. Por isso temos que ser tolerantes conosco mesmo e com os outros. O imprevisível nos ronda para nos tirar do comodismo destruidor de tudo. “Vigiai e orai para que não entreis em tentação”, disse Jesus aos discípulos que dormiam de tristeza, e o fez no momento mais crucial de sua vida. Nossa maior tentação é, sem dúvida, a do comodismo. Viver é um desafio constante.