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Meu tributo a Noé

Do Brog de André Ricardo
Meu tributo a Noé

Publicado em 31/08/2023 por andre33martins

§ 1º Sob o primeiro impacto da notícia de sua morte, uma constatação. Ele me ajudou a pensar fora da caixinha. Nossos caminhos se cruzaram em fins de 1993, começo de 94, quando recém-chegado a Brasília para assumir meu primeiro emprego público, o de assessor técnico na Câmara Legislativa do Distrito Federal, já o encontrei na assessoria legislativa da Casa. Fomos apresentados por amigos em comum. O mineiro Noé Stanley Gonçalves cativou-me pela sabedoria, simplicidade, opção político-existencial progressista, boa prosa, simpatia e uma verve bem-humorada. Sua jornada encerrou-se anteontem, em Divinópolis (MG) onde vivia desde que se aposentou.

§ 2º Não farei deste espaço um necrológio. Com maior pertinência e esmero, o pastor Júlio Borges o fez, postando-o no Facebook. Vou apenas pontuar algo de seu legado. Nossa amizade começou na labuta cotidiana. Partilhávamos o almoço quase diário no restaurante da CLDF. Éramos uns quatro ou cinco comensais de idades e experiências distintas. Noé surpreendia pelas constantes citações de autores, trechos de canções, passagens de filmes. E tudo isso bem a propósito e dosado, nada de arrogância. Nem falas enfadonhas, pessimismo, autoindulgência.

§ 3º Tínhamos em comum a origem protestante e a militância na Aliança Bíblica Universitária. Em sua denominação, Noé viveu processo algo semelhante ao de outro conterrâneo seu, Rubem Alves. Em determinado momento, a ortodoxia árida em tempos de obscurantismo no país asfixiava espíritos não-conformistas. Fora da instituição, alinhou-se em campo teológico heterodoxo. Quando vem para Brasília, a convite do deputado distrital Wasny de Roure para integrar seu gabinete (logo no primeiro mandato), ele e Júlio Borges – ambos ex-pastores batistas – e outros irmãos fundam uma comunidade que eu chamava na intimidade de “igreja alternativa”.

§ 4º Foi Noé quem me fez notar como aqueles sábios do oriente deram um banho (os usos metafóricos são meus) nos teólogos de Jerusalém, por ocasião do nascimento do Messias. Saíram de longe em busca do Rei dos Judeus. Não foram exatos na geografia, mas tinham ciência do acontecimento universal enquanto os doutores da Lei comiam mosca nas intermináveis discussões teológicas de baixo proveito. Daí, sempre que identifico demandas indevidas da turminha do ISO 9000 teológico, recordo Noé Stanley e digo de mim para mim mesmo: “Menos, meus irmãos, menos…”

§ 5º Noé ficou paraplégico já adulto, por conta de um vírus. Eu o abordei sobre isso e a relação dessa questão com sua fé. Se crise ele viveu por isso, acredito que a resolveu. Era um batalhador que procurava viver seu presente, sem essa de querer pressionar o Eterno em busca de respostas. Quando o conheci, usava um fusquinha adaptado. Certa vez, deu-me carona. Diante da minha curiosidade, explicou em linhas gerais como funcionavam os comandos de acelerador, embreagem e freio. Ao estacionarmos, pediu-me ajuda para pôr a cadeira de rodas no jeito. Em seguida, apenas bateu a porta do carro, sem passar a chave ou acionar o alarme. Diante do meu espanto, com aquele seu humor, ponderou que o ladrão não iria adiante por se tratar de carro adaptado. Mas se por acaso conseguisse levar o veículo, faria um favor ao dono que já tava querendo comprar um melhor. Caí na gargalhada.

§ 6º Em nossa comunidade da Asa Norte, no começo dos anos 2000, convidei-o para palestrar na Escola Dominical. Já casado em segundas núpcias com Gláucia, sua prima, eles compareceram com toda boa vontade. Aliás, recordo dele a pontuar o verso de Beto Guedes em Sol de Primavera: “A lição sabemos de cor, só nos resta aprender.” Dei-me conta de que expressa bem minha postura em algumas situações da vida. Sei muitas coisas de cor, ainda assim falta-me aprender, mergulhar, praticar… Diante do insight, fiz dele a epígrafe de minha tese de doutorado. A propósito, o desafio de pensar fora da caixa tá de pé, e Noé sempre vai me inspirar.

Obrigado, amigo

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